A maioria das pessoas no mundo joga. Qualquer coisa, em qualquer plataforma, em qualquer lugar, a qualquer hora, com quaisquer pessoas. O jogo é um fenômeno cultural, que antecede a cultura humana e que também pertence a natureza animal. Johan Huizinga diz que o jogo é mais do que “um fenômeno fisiológico ou reflexo psicológico”.
Na melhor das hipóteses o jogo é visto como auxiliar na coordenação motora, desenvolvimento de agilidade mental para solução de problemas, válvula de escape para nossas energias , preparação do indivíduo para a vida futura (Jenkins, Montfort).
Na pior das hipóteses é visto como uma mídia que isola o indivíduo, que o torna tenso e violento, que não permite ao indivíduo desenvolver a imaginação ou o senso de exploração do mundo (Johnson, Mollick).
As duas vertentes estarão sempre procurando justificativas para seus argumentos, mas o que verdadeiramente importa é que “brincamos e jogamos, e temos consciência disso porque somos mais do que seres racionais, pois o jogo é irracional” (Huizinga).
Embora sejam considerados entretenimento, diversão, distração para os micromomentosdetedio (como o Angry Birds), as pessoas jogam sério. Elas ficam imersas naquele ambiente e sentem nos nervos as emoções do jogo. Como no futebol, por exemplo. Existe uma arena, os participantes, as regras e a audiência. Vai dizer que isso não é sério? Ou então como no jogo de paciência que você tem no seu celular e que você não deixa sua mãe jogar porque ela vai “detonar” a sua média de tempo de jogo?
Isso não é sério?
E se tomássemos as redes sociais como um tipo de jogo?
… enquanto isso a morte faz amizades no twitter…
Vejamos o que diz Huizinga:
- a primeira característica de um jogo é o fato de ser, ele próprio liberdade: sendo assim, a adesão às redes sociais também não é compulsória. Aderimos e usamos da forma que bem entendemos. Somos livres para postar, publicar e adicionar amigos. Também devemos ser livres pra “parar de brincar”.
- o jogo é uma evasão da vida real para uma esfera de atividade temporária: nossos perfis nas redes sociais também não são nossa vida real, são identidades que construímos, em que “glorifica-se a maior das pequenezas, enquanto se parece buscar a maior das grandezas”, como aponta Paula Sibilia (O show do eu), “personalidades alterdirigidas” contruídas para o olhar alheio, ou exteriorizadas”. Embora tudo aconteça em “tempo real”, aquela não é a nossa vida real, por mais que registrem o Instagram e o Foursquare. Por mais que usemos as mascaras sociais nas nossas relações, nada chega perto das construções mirabólicas que podem ser feitas na rede. Vide Catfish. Se tratarmos as redes sociais como um deslocamento para outra esfera, então, poderemos também dizer que estamos deixando nossa vida real de lado para nos dedicarmos a atividades prazerosas, mas que consomem nosso tempo da vida real. Em outras palavras, deixamos de viver de verdade para viver num ambiente não totalmente real. É um “intervalo na nossa vida cotidiana”, como diz Huizinga a respeito do jogo.
- todo jogo é capaz, a qualquer momento, de absorver inteiramente o jogador:desnecessário dizer que aqui aparecem os viciados em rede social. Aqueles que tem o facebook no celular e quando o alerta toca de madrugada ele acorda pra olhar, aqueles que tem que olhar cada alerta que aparece não lido nos seus aplicativos sociais, aqueles que colocam todos os seus passos registrados na rede usando imagens, filmes, lembranças de músicas com links para o Youtube, registros de fotos antigas que preencham a timeline desde o dia em que você nasceu.
- em sua qualidade de distensão, ele se torna um complemento, parte integrante da vida: assim como o jogo, a rede social amplia a nossa vida, e como integra a vida torna-se função vital e necessária, para o indivíduo e para a sociedade. Quando alguém abandona uma rede social, as pessoas se questionam sobre os motivos que conduziram a isso, como se não pertencer a uma rede, não querer compartilhar informações sobre a sua vida real, fosse algo inconcebível no mundo contemporâneo multimidiático conectado. Se você não está, você não é.
- distingue-se da vida comum tanto pelo lugar, quanto pela duração que ocupa:estar compartilhando numa rede social não é o mesmo que estar compartilhando numa mesa de bar, ou na casa de amigos jogando Kinect. É compartilhar isolado, cada um no seu celular, mesmo estando às vezes numa mesa de bar – aliás é a coisa mais comum hoje em dia: ver pessoas se falando pelo celular sentadas na mesma mesa de bar via redes sociais.
- o jogo lança sobre nós um feitiço: do mesmo jeito que cativam as redes sociais. Elas nos enfeitiçam com suas possibilidades, ou melhor, com as possibilidades de exposição que elas nos dão. É sedutor demais fazer um check in no Le Bristol, ou tirar uma foto na Ramblas, ou na Body Shop da Rämistrasse. E esse feitiço faz com que todos se acreditem poderosos, elegantes, ricos e famosos. Verdadeiras celebridades do aeroporto Santos Dumont – with 136 others.
- o elemento de tensão e solução domina os jogos solitários de destreza e aplicação: essa analogia é bem simples, afinal de contas, o quanto pode nos deixar tensos fazer um post e não receber nenhum comentário, replicação ou famigerado like nos cinco minutos seguintes. Nos jogos sempre há a questão do esforço e da recompensa. O mesmo acontecem com o que publicamos. Se for algo muito “legal” para aqueles amigos que te acompanham, uma onda de curtição e compartilhamento te salvará da tensão pós publicação.
- o jogo permite ao indivíduo tornar-se outro: quem são, de verdade, as pessoas que estão na suas rede social? Aquela pessoa super divertida na rede e que quando você encontra num evento é um saco. Ou aquela que vive reclamando que é pobre, mas que tem toda a coleção de camisetas da Rock Lily? Ou ainda aqueles que escrevem “fiz um post gigantesco e me lembrei que estava na rede social, apaguei e comi uma caixa de bombons”? Quem são as pessoas com quem você se relaciona? Provavelmente o máximo que você consegue dizer para a maioria dos aniversariantes do dia é “Parabéns, garota!”, porque você não se lembra exatamente de quem é ou porque você mantem laços fracos demais com essas pessoas que lhe permitam dizer “Parabéns, sucesso no seu novo emprego, continue com esse sorriso lindo e vamos tomar todas em sua homenagem esta noite”. Não é mesmo?
- a função do jogo pode ser definida pela luta por alguma coisa ou pela representação de alguma coisa: lutamos para ser no mundo digital e representamos alguém que mereça ser lembrado nas redes. “Os frutos da vitória podem ser o prestígio, a glória e a honra”, o famoso capital social nosso de cada dia.
Se nós, humanos, somos um joguete de Deus, então as redes sociais muito bem podem ser um jogo dos homens. E se a maioria das pessoas joga, joga também nas redes sociais, e as suas melhores e piores performances também se assemelham.
Eu adicionaria mais uma: talvez, elas nos tornem menos profundamente questionadores. Uma coisa tão antiga quanto Platão e Marx.
Fontes:
- Homo Ludens, Johan Huizinga
- O show do eu, Paula Sibilia
- First Person, Nick Montfort
- Everything bad is good for you, Steven Johnson
- Changing the game, David Edery e Ethan Mollick
- Fans, Bloggers and Gamers, Henry Jenkins