A logística urbana se tornou o novo campo de batalha do e-commerce. Com a explosão dos pedidos online, empresas, governos e consumidores se veem diante de um desafio monumental: como fazer com que milhões de entregas cheguem rápido, com baixo custo e o menor impacto possível às cidades?

O problema é que estamos tentando resolver esse quebra-cabeça às cegas. Um estudo recente e revelador, publicado por Rai & Dablanc, escancarou uma realidade desconfortável: mesmo em plena era dos dados, a logística urbana do e-commerce ainda opera em terreno nebuloso, mal mapeado e repleto de lacunas.
Neste artigo, destaco cinco dessas lacunas que, se não forem enfrentadas, podem travar a inovação e dificultar o avanço da logística de last mile.
1. Onde estão as infraestruturas logísticas do e-commerce nas cidades?
Surpreendentemente, ainda sabemos muito pouco sobre a localização, a capacidade e o uso das instalações logísticas urbanas. Quantos centros de distribuição, microhubs, pontos de coleta ou lockers existem em São Paulo ou em outra metrópole brasileira? Onde estão concentrados? Quem opera esses ativos?
A maioria das informações disponíveis vem de fontes secundárias, mapas abertos ou estimativas pouco precisas – quando existem. E com o avanço de modelos como “ship-from-store”, dark stores e lockers modulares, o cenário muda rápido. Sem esses dados, não conseguimos avaliar corretamente o impacto do e-commerce sobre o uso do solo, o tráfego ou o meio ambiente.
2. Quantas viagens uma entrega realmente exige? Ninguém sabe direito.
Talvez o maior “ponto cego” esteja justamente no coração da operação logística: as viagens de entrega.
Sabemos que frotas de vans, motos, bikes e até patinetes cruzam nossas ruas todos os dias. Mas quantas entregas cada rota comporta? Qual a distância média? Quantas tentativas falhas acontecem? Quantas viagens um único pedido pode gerar? Pouquíssimos estudos trazem respostas claras e quase nenhum com dados abertos, padronizados e comparáveis.
Sem esses números, fica impossível calcular externalidades como poluição, congestionamento ou o impacto real das entregas expressas. É como tentar melhorar a mobilidade urbana sem saber quantos carros circulam.
3. Quem é o consumidor urbano de e-commerce? Ainda temos apenas um esboço.
Outra lacuna gritante é sobre o comportamento do consumidor.
Muito se fala sobre conveniência, omnichannel e personalização. Mas quantos consumidores realmente preferem lockers a entregas em casa? Quantos topam pagar mais por entregas sustentáveis? Como gênero, idade ou bairro influenciam a decisão de compra online?
A maioria das pesquisas usa amostras limitadas (como estudantes) ou extrapola dados nacionais para contextos urbanos específicos, o que pode distorcer bastante a realidade. Entender as nuances do comportamento urbano é essencial para o e-commerce criar estratégias mais eficazes e inclusivas.
4. Pedidos, pacotes ou entregas? A bagunça dos volumes.
Por fim, temos um problema semântico – e operacional.
Estudos e relatórios usam os termos “pedidos”, “pacotes” e “entregas” como se fossem a mesma coisa, mas não são. Um pedido pode gerar vários pacotes, enviados por fornecedores distintos, que por sua vez resultam em múltiplas entregas. Esse efeito é especialmente comum em marketplaces.
Essa confusão compromete a leitura dos dados. Estimar, por exemplo, o volume logístico de uma cidade com base apenas em número de pedidos pode subdimensionar (ou exagerar) o real impacto sobre o sistema urbano. Pior: muitos números vêm de cálculos opacos, baseados em proxies ou extrapolações genéricas, sem transparência metodológica.
5. Como comparar dados se cada um mede de um jeito?
Mesmo quando os dados existem, ainda enfrentamos um desafio recorrente: a falta de padronização metodológica.
Pesquisas usam definições diferentes para conceitos básicos (como o que é uma “entrega” ou uma “viagem”) e aplicam questionários, cálculos e indicadores sem qualquer alinhamento. Isso torna quase impossível comparar cidades, anos ou modelos logísticos distintos.
Além disso, muitas vezes os estudos não informam claramente as fontes dos dados, o período da coleta ou as fórmulas utilizadas, o que compromete a transparência e a reprodutibilidade. Na prática, isso enfraquece tanto a pesquisa acadêmica quanto as decisões estratégicas de negócios e políticas públicas.
Caminhos para uma nova agenda de dados logísticos
Aqui destaco o que considero mais relevante sobre a contribuição de Rai & Dablanc. A proposição de uma agenda comum de dados para o e-commerce urbano. Precisamos de:
– Padronização das métricas (o que é um pedido? o que conta como entrega?);
– Transparência nos métodos de coleta e cálculo;
– Mais estudos com base em dados reais e representativos, especialmente nas grandes cidades brasileiras;
– Colaboração entre varejistas, operadores logísticos, governos e universidades;
– Uso de novas fontes de dados: sensores, mapas abertos, entrevistas estruturadas, pesquisas de mobilidade.
Mais do que uma questão acadêmica, essa é uma agenda estratégica para o futuro do e-commerce. Afinal, não dá para escalar um sistema que a gente mal conhece.
*Esta é minha análise independente baseada no artigo de Rai, H. B., & Dablanc, L. (2023). Hunting for treasure: A systematic literature review on urban logistics and e-commerce data. Transport Reviews, 43(2), 204–233.