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IA como infraestrutura: o salto que o e-commerce nacional precisa construir

Por: Lucas Bacic

Chief Product Officer na Loja Integrada

Líder de Produto da Loja Integrada e ex-Diretor de Marketing Global da VTEX, mentora equipes de alta perfomance nas áreas de gestão de produto, design e comunicação. Por aqui, compartilha sua experiência em impulsionar o crescimento de lojistas por meio de estratégias integradas de produto e marketing.

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Nos últimos anos, os profissionais de e-commerce testemunharam uma explosão na aplicação de inteligência artificial para automação de tarefas, personalização de campanhas e suporte ao cliente.

No entanto, um movimento mais profundo e estruturante começa a emergir: a transformação da IA de ferramenta para infraestrutura tecnológica. Esse novo paradigma, centrado nos chamados agentes de IA, não é apenas mais um hype – ele pode (e deve) reformular a forma como produzimos e capturamos valor digital no Brasil.

Agentes de IA são uma resposta estratégica à desigualdade estrutural do nosso setor e têm potencial para reformular a forma como o Brasil, especialmente o varejo digital, produz e captura valor na nova economia. Este artigo parte da ótica de quem constrói e opera produtos digitais no e-commerce para discutir o que são esses agentes, por que importam e como evitar repetir os erros de ciclos tecnológicos passados.

Inteligência artificial como infraestrutura: um salto comparável à internet

Historicamente, saltos tecnológicos vêm acompanhados de multiplicadores da capacidade humana:

– A revolução industrial multiplicou o músculo.

– Os computadores multiplicaram o pensamento.

– A internet multiplicou a conexão.

– Agora, a IA – especialmente em sua aplicação via agentes autônomos – está prestes a multiplicar a ação inteligente.

Se antes pedíamos à IA que nos respondesse algo, hoje pedimos que ela execute: gerar descrições de produtos, publicar em marketplaces, responder a clientes, ajustar campanhas de mídia ou precificar com base em estoque e margens. E ela executa, com autonomia crescente, embasada por objetivos dados por humanos ou sistemas.

É nesse ponto que agentes de IA se distinguem de meros assistentes: eles não apenas “pensam”, mas decidem e agem. Essa diferenciação técnica é essencial. A definição que mais se alinha à realidade atual é a da Anthropic (2024), que os define como “sistemas inteligentes que tomam decisões e executam ações de forma autônoma a partir de objetivos definidos por humanos ou sistemas”.

Sem infraestrutura local, o Brasil corre o risco de repetir ciclos de dependência tecnológica

Apesar do nosso protagonismo como força de trabalho global, há um abismo na captura de valor. Dados recentes da pesquisa Atlas of Economic Complexity (Harvard, 2023) e do McKinsey Global Institute (2024) apontam que menos de 1% do investimento mundial em IA foi destinado ao Brasil, enquanto 77% concentram-se em apenas seis países. Ao mesmo tempo, previsões da ILO (Organização Internacional do Trabalho) sugerem que o Brasil pode enfrentar impactos de automação acima da média latino-americana, especialmente em funções operacionais.

O problema não está apenas no acesso à tecnologia – como a disponibilidade de ferramentas ou plataformas -, mas na ausência de infraestrutura local para criar, distribuir e capturar valor com ela. O Brasil corre o risco de mais uma vez repetir um ciclo histórico recorrente: somos ricos em recursos (humanos, criativos, naturais), mas exportamos valor bruto e reimportamos soluções prontas, com preço, tecnologia e lucros definidos por outros mercados.

Hoje, esse ciclo se expressa de forma digital. Exportamos nossos dados, que alimentam modelos globais de IA sem retorno proporcional em valor econômico. Exportamos também nosso tempo de uso, investido em plataformas fechadas, nas quais o que produzimos (conteúdo, comportamento, conhecimento) é monetizado fora do país. Em contrapartida, importamos produtos finais: agentes prontos, modelos pré-treinados, integrações comerciais empacotadas – muitas vezes com pouca aderência ao contexto local.

Sem meios próprios para desenvolver e distribuir soluções, seguimos ocupando um papel periférico: não como protagonistas da revolução tecnológica, mas como consumidores de soluções criadas para outras realidades.

Casos reais: quando a IA autônoma começa a operar no e-commerce brasileiro

Contrariando a tendência de dependência externa, alguns exemplos nacionais começam a traçar caminhos alternativos:

– Agentes de cadastro e publicação automática de produtos: sistemas que, a partir de uma simples foto e descrição, enriquecem metadados, adaptam e distribuem para múltiplos marketplaces, respeitando as regras específicas de cada canal. Esse tipo de agente elimina gargalos operacionais cruciais para PMEs e sellers independentes.
– Agentes para gestão de mídia paga: com base em performance, ajustam budget, segmentações e criam campanhas de forma quase conversacional, usando o WhatsApp como interface. Ideal para pequenos lojistas que não têm expertise técnica, mas precisam competir em ROAS com grandes marcas.
– Agentes de precificação e planejamento no varejo físico: empresas como a ION, especializada em dados para o setor, já operam com agentes que otimizam rentabilidade ao cruzar estoque, margem e demanda em tempo real.

Todos esses sistemas compartilham uma característica comum: não exigem cliques em dashboards complexos. Eles são conversacionais, acessíveis e, mais importante, foram construídos aqui, no Brasil.

Agentes de IA como ferramenta de inclusão produtiva

Muito se fala sobre como a inteligência artificial pode aumentar a produtividade no e-commerce, mas ainda subestimamos seu papel como infraestrutura de inclusão produtiva. Em um cenário no qual milhares de empreendedores operam à margem da eficiência por falta de tempo, conhecimento técnico ou capital para contratação, os agentes de IA oferecem uma alternativa radical: a automação como equipe invisível.

Um exemplo emblemático vem da França – e, sim, envolve um croissant.

Croissant artesanal, operação automatizada. Na Moon Base Croissant, a IA cuida do negócio – Ama foca na receita.

À primeira vista, um croissant amanteigado e dourado da Moon Base Croissant, localizada em Dijon, poderia passar por mais uma imagem hiper-realista gerada por IA. Mas a verdade é ainda mais interessante: ele é real, e a IA está nos bastidores.

Ama Athige, ex-desenvolvedora de software, fundou a confeitaria ao perceber que poderia aplicar seu conhecimento técnico para automatizar todas as tarefas que não envolviam sua paixão – cozinhar. Resultado: estoque, finanças, produção, comunicação e atendimento são gerenciados por agentes de IA e ferramentas de automação, como Notion, Airtable, Make e Zapier, conectados por uma lógica de orquestração autônoma.

O impacto operacional é impressionante:

– Finanças: projeções de margem por produto e ajuste de preços conforme o custo de insumos.

– Produção: previsão de demanda com base no clima e nas datas comemorativas.

Marketing: geração de conteúdo e otimização de mídia paga por canal.

– Atendimento: chatbot treinado com dados do cardápio e histórico de dúvidas dos clientes.

Com essa estrutura, Ama consegue dedicar mais de 80% do seu tempo à criação de receitas, com zero envolvimento em tarefas operacionais do dia a dia. Em apenas dois anos, a confeitaria expandiu e passou a buscar investidores – sem depender de agências externas ou equipes amplas.

Esse caso, documentado em entrevistas e pesquisas da Microsoft Research (2024), exemplifica como indivíduos podem alavancar tecnologia de forma intencional para preservar sua energia criativa e gerar impacto econômico.

Mas o ponto mais relevante é o modelo mental: menos execução, mais intenção. Essa abordagem não depende de alto investimento inicial, e sim da capacidade de integrar agentes e sistemas a um fluxo de trabalho. É o tipo de inovação que pode – e deve – ser replicada por negócios locais brasileiros, especialmente no varejo digital.

Em regiões onde a infraestrutura tradicional falha, a infraestrutura digital baseada em IA pode ser a alavanca que faltava para tirar o e-commerce de sobrevivência e levá-lo à escala – com menos fricção e mais foco estratégico. E isso se aplica tanto a microempreendedores quanto a operações mais robustas que desejam descentralizar e especializar sua estrutura sem inflar o custo fixo.

O que está em jogo: domínio local ou dependência crônica?

Se o Brasil não desenvolver infraestrutura própria de agentes e ambientes de distribuição locais, corre o risco de:

– Exportar desenvolvedores e soluções para marketplaces estrangeiros.

– Perder valor transacional de microiniciativas para plataformas globais.

– Aumentar a concentração de capital tecnológico fora do país.

Evitar esse cenário exige ação coordenada entre desenvolvedores, distribuidores e operadores do e-commerce. Não se trata de protecionismo, mas de recirculação de valor e de garantir autonomia técnica e econômica para o ecossistema nacional.

O e-commerce brasileiro tem uma vantagem comparativa significativa: sua complexidade logística, diversidade de canais e natureza altamente operacional o tornam o ambiente ideal para validar e escalar agentes de IA úteis e aplicáveis.

Se quisermos transformar a IA em algo além de automação de tarefas repetitivas – e sim em um catalisador de produtividade distribuída -, o momento de estruturar essa infraestrutura é agora. Mais do que importar soluções, precisamos criá-las, contextualizá-las e distribuí-las localmente, de forma interoperável e acessível.

Esse não é um movimento inevitável. É uma escolha. O Brasil extraordinário não vai ser dado, vai ser criado.