O mercado brasileiro de delivery vive uma nova fase de disputa. A compra da Rappi pela Amazon, o retorno da 99Food e as recentes críticas de restaurantes às condições do iFood recolocaram em pauta um tema antigo: a sustentabilidade financeira dos estabelecimentos frente às taxas e regras impostas pelas plataformas.

Em um ambiente de margens cada vez mais apertadas, o modelo de intermediação das entregas, que ganhou protagonismo durante a pandemia, agora é questionado por donos de bares e restaurantes. A principal queixa recai sobre a falta de transparência nos contratos e sobre os percentuais de comissão, que em alguns casos podem chegar a 30% do valor do pedido.
Contratos de adesão e assimetria de poder
De acordo com o advogado Pedro Salles, especialista em contratos de plataformas digitais, o ponto de partida dessa discussão é o tipo de vínculo firmado entre restaurantes e aplicativos. “Esses contratos são de adesão, ou seja, não permitem negociação. As plataformas definem as regras, e os restaurantes precisam aceitar para operar”, explica.
Salles chama atenção para cláusulas consideradas sensíveis, como penalidades financeiras, descontos automáticos e alterações unilaterais de comissão. “Em alguns casos, as plataformas mudam percentuais sem aviso prévio. Isso afeta diretamente o fluxo de caixa e dificulta o planejamento dos negócios”, afirma.
Outro ponto crítico é a exclusividade contratual. “Quando o contrato impede que o restaurante atue em outras plataformas, há desequilíbrio. A exclusividade, se longa e sem contrapartidas, pode se tornar abusiva”, observa o advogado. Segundo ele, a Justiça tende a reconhecer o restaurante como a parte mais vulnerável nessas relações, o que reforça a necessidade de revisar com atenção cada cláusula antes da adesão.
Pressão competitiva e novos modelos
A disputa entre iFood, 99Food e Rappi ocorre em um momento em que o setor busca novos formatos para equilibrar custos e margens. A 99Food tenta ocupar espaço com taxas reduzidas e planos flexíveis, prometendo atrair estabelecimentos que ficaram de fora do delivery devido ao custo operacional. Já o iFood, líder do mercado, afirma trabalhar para aprimorar canais de diálogo e reforçar a transparência contratual.
Analistas veem a entrada da Amazon como um ponto de inflexão. A gigante norte-americana tende a trazer escala, tecnologia e novas integrações logísticas ao segmento, pressionando competidores a repensar modelos de rentabilidade. A consolidação do delivery é inevitável, mas ela precisa vir acompanhada de uma discussão sobre equilíbrio nas relações comerciais.
Restaurantes entre dependência e autonomia
Para os restaurantes, o dilema permanece. De um lado, as plataformas ampliam a visibilidade e o alcance de vendas. Do outro, aumentam a dependência operacional e reduzem a margem de lucro. Segundo pesquisa do Instituto Locomotiva, sete em cada dez estabelecimentos da Grande São Paulo afirmam que as taxas cobradas afetam negativamente o faturamento, e 73% gostariam de ter mais opções de aplicativos.
A diversificação de canais, seja com sistemas próprios de entrega, marketplaces alternativos ou programas de fidelidade diretos, tem se mostrado uma das poucas estratégias possíveis para reduzir riscos. “O restaurante que depende 100% de uma plataforma se coloca em posição vulnerável. O ideal é buscar equilíbrio entre visibilidade e autonomia”, reforça Salles.
Consolidação e próximos passos
O movimento recente de fusões e relançamentos sinaliza uma reacomodação do mercado, agora dominado por grandes ecossistemas digitais. Ainda que a competição traga novas ofertas e modelos de precificação, o consenso entre especialistas é de que a transparência contratual e o equilíbrio nas condições serão determinantes para o futuro do setor.
A pressão dos restaurantes por regras mais claras e a entrada de novos players com abordagens distintas indicam que o delivery brasileiro está prestes a viver uma nova rodada de ajustes, menos marcada por crescimento a qualquer custo e mais pautada pela sustentabilidade das relações comerciais.