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Quando a velha economia absorve inovação

Por: João Eliezer Cunha Guimarães

João Eliezer Cunha Guimarães é sócio-fundador da Camaya Partners, atuando há 24 anos em M&A. Possui ampla experiência em transações e projetos em setores como serviços, varejo, tecnologia, alimentos, químicos e cosméticos. Liderou a reestruturação da Montelac Alimentos S/A, uma das dez maiores empresas de laticínios do Brasil na época, adquirindo participação relevante no capital da companhia, e é membro do conselho da Evertrend Ltda.

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O mercado de fusões e aquisições no Brasil vem revelando uma dinâmica que poderia ser chamada de disrupção reversa. Se antes startups surgiam para desafiar empresas tradicionais em setores como bancos, saúde e varejo, hoje vemos justamente o contrário – corporações estabelecidas comprando ou investindo em negócios digitais que nasceram para desafiá-las.

Notebook sobre mesa exibindo a frase ‘Fusões e aquisições’, com gráficos impressos ao lado em ambiente de escritório.
Imagem gerada por IA.

De janeiro a maio de 2025, as operações de fusões e aquisições no Brasil registraram um aumento de 15% em volume total na comparação com o mesmo período do ano passado. Dados da PwC Brasil mapearam 596 transações nesse intervalo, evidenciando o apetite crescente de grandes companhias por ativos tecnológicos e inovadores.

Por que corporações tradicionais estão correndo para comprar startups

Bancos que se sentiam ameaçados pelas fintechs, hospitais pressionados pela ascensão da telemedicina e varejistas confrontados pela escalada do e-commerce agora recorrem às aquisições como forma de reagir e se reinventar. O caso do Santander, por exemplo, ao investir na a55, reforça a estratégia de apoiar a inovação em serviços financeiros, com foco em uma fintech que concede crédito a pequenas e médias empresas usando suas receitas como garantia. Ao adquirir participação em players emergentes, bancos garantem não só acesso a tecnologia e capilaridade digital, mas também neutralizam potenciais ameaças antes que elas cresçam demais.

Na saúde, o movimento foi acelerado pela pandemia. Grupos tradicionais, historicamente marcados por estruturas físicas, partiram para a aquisição de startups de telemedicina e soluções digitais de cuidado remoto. Foi uma forma de incorporar rapidamente capacidades que seriam impossíveis de desenvolver internamente na mesma velocidade. Ao mesmo tempo, esse tipo de aquisição levanta dúvidas sobre a capacidade de preservar a agilidade típica de uma healthtech diante da governança rígida de empresas baseadas em estruturas físicas.

O varejo também entrou forte nesse movimento. O e-commerce brasileiro faturou mais de R$ 200 bilhões em 2024, com crescimento superior a 10%, impulsionado pela personalização por inteligência artificial, que aumentou vendas e fidelização com elementos de machine learning e big data que permitem uma análise preditiva do comportamento do consumidor. Para 2025, a ABComm prevê faturamento acima de R$ 234 bilhões, crescimento de 15%, ticket médio de R$ 539,28 e três milhões de novos compradores.

Diante desse cenário, empresas como Magazine Luiza, que adquiriu a Logbee para ampliar sua capacidade logística, e Lojas Renner, que comprou a startup de logística urbana Uello, demonstram que integrar o novo antes que o novo substitua o velho é uma questão de sobrevivência.

Os riscos da absorção da cultura startup

Em muitos casos, porém, o risco é a perda de talentos-chave, a diluição da cultura ágil e a transformação da proposta disruptiva em apenas mais um processo corporativo. Também surge uma questão geracional pouco discutida. Será que representantes das gerações Y e Z, acostumados a um ritmo digital acelerado e a valores ligados à flexibilidade e propósito, têm de fato a capacidade de liderar o processo de integração pós-aquisição ou de influenciar executivos da geração X, que carregam décadas de experiência e uma visão mais pragmática de gestão?

Em sua 14ª edição, a pesquisa global da Deloitte revelou que 89% dos profissionais da geração Z e 92% dos millennials consideram que ter um senso de propósito é importante para sua satisfação no trabalho e bem-estar. Esse dado ajuda a explicar por que tantas startups nasceram com propósito e cultura no centro de sua estratégia e também por que o choque com estruturas tradicionais é inevitável.

Esses exemplos mostram que a velha economia não está apenas reagindo, mas buscando se reinventar por meio da absorção da nova. A questão central continua em aberto, pois é preciso entender até que ponto essas aquisições preservam a essência inovadora das startups. Em muitos casos, o risco é que o choque cultural transforme a promessa digital em mais uma engrenagem corporativa. Em outros, a combinação de tradição e inovação pode gerar um efeito multiplicador, irradiando novas práticas para toda a organização.

Mais do que múltiplos de EBITDA ou sinergias financeiras, esse movimento de disrupção reversa revela que os negócios mais relevantes do futuro serão julgados pela capacidade de conciliar culturas opostas. Startups vendem não apenas tecnologia, mas uma forma de pensar. As corporações compram não apenas negócios, mas uma promessa de reinvenção. O desafio é simples de formular e difícil de executar, e a pergunta que fica é: quem compra está realmente preparado para não matar aquilo que o motivou a comprar?