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Desventuras em série: o incrível caso do colapso da Rakuten no Brasil

Por: Pedro Ivo Martins Brandão

Sócio e Chief Revenue Officer (CRO)

Sócio e Chief Revenue Officer (CRO) na Dito CRM. Professor de pós-graduação na Fundação Dom Cabral. Formado em Comunicação, com Especialização em Gestão Estratégica e Mestrado em Ciências Sociais.

Acabei de ler o documento jurídico de pedido de recuperação judicial (20 páginas) que narra a história da quebra da Rakuten no Brasil e fiquei abismado. Abaixo uma linha do tempo com os principais pontos relatados no texto, que contam a história do “colapso” numa linguagem não jurídica pelo ponto de vista da empresa.

Leia também: Grupo que comprou Rakuten no Brasil pede recuperação judicial

Em seguida, algumas lições de empreendedorismo, tanto para o mercado de tecnologia, quanto para o setor de Varejo. Algumas coisas precisam ser ditas, já que algumas operações parecem não se preocupar com requisitos básicos de gestão de negócios.

História do colapso

– A empresa foi a primeira a oferecer lojas virtuais no Brasil em 1995, ainda como Ikeda, adquirida em 2011 pelo Grupo Rakuten, conglomerado tecnológico japonês que também possui plataformas de meios de pagamento, logística, estoque e suporte técnico, entre outros.

– Operação nunca foi lucrativa no Brasil e acumulou um passivo de R$ 46 milhões. “A despeito do seu pioneirismo, e como sói ocorrer com empresas da área de tecnologia, a operação das Recuperandas nunca foi lucrativa, embora tivesse importância estratégica considerável”.

– Em outubro de 2019, o Grupo Rakuten vendeu sua participação para o Grupo Gencomm, que sabia das dificuldades financeiras, com prejuízo acumulado de R$ 40 milhões apenas nos últimos 12 meses.

– Mesmo assim, acreditavam na recuperação, que começou em novembro, quando reduziram a perda média mensal de R$ 2 milhões para R$ 250 mil: “Considerando todas as informações disponibilizadas e as análises realizadas, tinham convicção de que as Recuperandas tornar-se-iam lucrativas e viáveis
financeiramente, após a devida reorganização e reformulação”.

– Mas aí vieram as surpresas: “Após assumir as operações das Recuperandas e realizar diversas diligências internas, verificou-se que as dificuldades financeiras do grupo eram muito maiores do que se esperava e, além disso, outros fatores subsequentes acabaram por vir a causar o inevitável e precoce colapso financeiro do Grupo Gencomm, assolando qualquer chance de sucesso na tentativa de recuperação extrajudicial do negócio”.

– O maior cliente da empresa era um caloteiro: uma loja virtual brasileira que comercializava produtos da Xiaomi na plataforma não era um revendedor autorizado pela gigante chinesa. 60% das vendas desse e-commerce foram contestadas (chargeback) porque consumidores não receberam mercadorias. O problema é que só esta loja representavam 50% da receita da plataforma de comércio eletrônico, tendo faturado uma média de R$ 10 milhões por mês entre fevereiro e setembro de 2019.

– Em meio à troca de controle, a linha de crédito que a empresa possuía no Itaú foi cortada: “Com o repentino corte da linha de crédito que sustentava o fluxo de caixa das Recuperandas, a situação financeira das Recuperandas agravou-se, uma vez que praticamente todos os valores recebidos pelas Recuperandas eram apropriados pelo banco, inclusive valores que deveriam ser repassados aos lojistas”.

– Descobriram também que vários produtos do grupo não tinham validação de mercado: “O portfólio de produtos desenvolvidos e oferecidos pelas Recuperandas estava extremamente inflado e poluído com ferramentas que não tinham sequer sido validadas devidamente antes de serem oferecidas aos clientes”. Com isso cortaram agora de 10 para 3 produtos, mantendo os mais lucrativos e reduzindo a estrutura de 200 para 68 funcionários.

– Algumas marcas da plataforma de ecommerce pagavam 1% do valor faturado, quando a média de mercado é de 2% a 3%. O bolso tem fundo: “Ao operar com taxas tão inferiores à média de mercado, os contratos eram, na verdade, deficitários. Ou seja, ao invés de lucrar com o desenvolvimento de sua principal atividade, as Recuperandas tinham prejuízo.”

– Modelo de tomada de decisão era muito complexo e impedia a agilidade da empresa: “A antiga diretoria mantinha estrutura burocrática e centralizadora quanto à tomada de decisões, deixando de delegar até decisões sobre questões cotidianas de menor importância para a empresa.”

– Despesas com marketing representavam 25% do valor das vendas, totalizando cerca de R$ 5 milhões. A atual administração pretende reduzir em 90% os investimentos nesta área. A Rakuten Expo, evento anual que a empresa fazia há 6 anos, já tinha sofrido alterações no ano passado, quando foi suspenso no Brasil com a justificativa de que seria unificado a um evento global da Rakuten nos Estados Unidos.

– Por conta dos acontecimentos com a loja não oficial da Xiaomi, a Cielo interrompeu as transações depois da falta de um acordo sobre taxas. Com isso, a empresa não consegue processar transações e os lojistas estão neste momento com suas operações interrompidas.

Cinco lições óbvias com o estudo do caso

1 – Um dia a conta chega

Algumas empresas operam durante anos sem lucro com base na tese de que, no fim, os concorrentes vão morrer e o mercado será dominado. Nos Estados Unidos, isso é chamado de “the winner takes all”, mas prefiro apelidar de Plano Highlander (lembram do filme?). Grandes varejistas do comércio eletrônico já tentaram isso no Brasil e acabaram sucumbindo. Pelas contas, a Rakuten teve 25 anos de prejuízo.

2 – Não coloque os ovos numa só cesta

Ter um cliente que representa 50% da receita, como no caso da Xiaomi, não é algo muito inteligente, principalmente se o contrato com ele não é claro e os antecedentes não foram bem analisados. A Rakuten acabou colocando em risco todas as outras marcas que usam sua plataforma quando topou entrar em um negócio com uma empresa que não era autorizada a vender os produtos da fabricante.

3 – Pressa é inimiga da perfeição

É muito tentador para qualquer empresa de tecnologia acelerar o lançamento de um novo produto, principalmente pela velocidade com que o mercado anda. De fato, na maioria das vezes, o melhor é usar a metodologia Lean Startup, com a entrega de um Mínimo Produto Viável (vale buscar o conceito de MVP e ler o livro do Eric Ries). Mas isso não pode ser confundido com manter vários produtos no mercado sem teste e sem margem.

4 – Power to the edges

Manter uma gestão burocrática era algo comum no século XX, quando o mercado não se movimentava na velocidade atual. Funcionou durante muito tempo, mas hoje precisamos dar poder às pontas, como aprendi com o amigo Gustavo Caetano (autor dos livros Pense Simples e Faça Simples).

5 – Não negocie sem ter alternativas

A dependência gigante de um fornecedor como a Cielo gera uma relação desigual. A financeira colocou um preço 15% maior nas taxas e não hesitou em cortar o serviço quando a Rakuten se recusou. Quem saiu perdendo mais? Para a Cielo, este faturamento perdido não representa muito. Já para a Rakuten…


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