A Black Friday se tornou, há anos, o grande símbolo de força do e-commerce brasileiro. Mas, apesar de toda a maturidade do setor, ainda vejo uma contradição que se repete anualmente: os varejistas investem milhões para vender mais em novembro, mas continuam negligenciando a etapa que mais afeta o caixa em dezembro, janeiro e fevereiro: a inadimplência que explode logo após o pico de consumo. É como construir uma grande porta de entrada e deixar a porta dos fundos completamente aberta.

A cada edição da Black Friday, o padrão é quase previsível. Consumidores empolgados com descontos fazem compras acima do usual, multiplicam parcelamentos, concentram gastos em um curto espaço de tempo e chegam ao fim do ano com um orçamento fragilizado. O varejo, por sua vez, celebra o aumento do GMV, mas pouco antecipa o impacto financeiro que virá semanas depois. Não é que as pessoas não queiram pagar; muitas vezes, simplesmente não conseguem encaixar mais uma despesa em um mês já pressionado por festas, férias e compromissos acumulados. A inadimplência, portanto, não surge como um desinteresse, mas como um sintoma de um fluxo financeiro real e previsível, e, mesmo assim, tratado como surpresa por muitas empresas.
A cobrança como extensão da jornada do cliente
O problema é que boa parte do varejo ainda enxerga a cobrança como um processo operacional, quase burocrático, quando ela deveria ser uma continuação natural da relação com o cliente. Se gastamos tanto esforço para conquistar alguém na Black Friday, por que tratamos essa mesma pessoa como um número frio de atraso no mês seguinte? A verdade é que a inadimplência não é o fim da jornada, é uma oportunidade de humanizar o relacionamento e mostrar ao cliente que a marca entende sua realidade. Quando o varejo aborda o consumidor com rigidez, linguagem ameaçadora ou processos difíceis, o efeito é o oposto do desejado: perde-se o cliente, destrói-se o valor construído na conversão e comprometem-se futuras vendas.
Por outro lado, quando a empresa assume que o atraso faz parte do ciclo e usa tecnologia para personalizar propostas, simplificar renegociações e criar uma experiência digna no momento de maior vulnerabilidade financeira do consumidor, a lógica muda completamente. O cliente não só tende a regularizar sua situação, como mantém, e muitas vezes fortalece, a sua relação com a marca. Hoje, ninguém quer negociar pelo telefone, repetir dados, justificar sua vida financeira ou perder tempo com etapas desnecessárias. O consumidor quer autonomia, rapidez, clareza e respeito. E, no pós-Black Friday, isso se torna essencial.
Transformando inadimplência em estratégia de retenção
O que defendo é simples: a cobrança precisa deixar de ser vista como uma área “reativa” e passar a ser uma estratégia de retenção. Se o varejo planeja a Black Friday durante meses, deveria planejar com igual cuidado o pós-Black Friday. Afinal, não adianta comemorar o aumento das vendas se o caixa não acompanha o mesmo ritmo. A inteligência aplicada à cobrança não é só sobre recuperar valores, é sobre preservar o cliente, algo muito mais valioso em um mercado extremamente competitivo.
A Black Friday termina em horas; seus efeitos no caixa duram meses. E enquanto o setor continuar tratando inadimplência como um problema marginal, continuará abrindo mão de resultados que poderiam ser amplamente previsíveis e administráveis. A boa notícia é que o varejo já tem tecnologia, dados e ferramentas suficientes para mudar esse cenário. Falta apenas encarar a cobrança como o que ela realmente é: uma etapa estratégica de relacionamento e sustentabilidade financeira do negócio.