Nos últimos anos, o discurso sobre “empreender para ter mais liberdade” deixou de ser slogan motivacional e virou dado de realidade. Em 2024, o Brasil bateu recorde com mais de 4,15 milhões de novos pequenos negócios abertos, sendo cerca de 3,09 milhões de MEIs, de acordo com levantamento do Sebrae a partir do CNPJ da Receita Federal. Em paralelo, o comércio eletrônico nacional movimentou cerca de R$ 225 bilhões em 2024, com micro e pequenas empresas respondendo por aproximadamente 30% desse valor.

Se olharmos para 2026, não estamos apenas diante de mais um ciclo de crescimento do e-commerce, mas de uma virada de perfil: 2026 tende a ser o ano em que o “empreendedor autoral” se consolida como protagonista do comércio digital.
Mais do que abrir CNPJ, essa nova leva de empreendedores busca renda, propósito e autonomia. E está usando o e-commerce, somado às redes sociais, como principal veículo para construir essa independência financeira de forma autoral, com marca própria, conteúdo e comunidade.
Do MEI à independência financeira: quando o e-commerce vira eixo da renda
O aumento no número de CNPJs não é, por si só, novidade. O que muda é a qualidade dessa formalização e a forma como ela se conecta ao digital.
Segundo o Atlas dos Pequenos Negócios, do Sebrae, os pequenos negócios movimentaram cerca de R$ 420 bilhões ao ano na economia brasileira em 2022, evidenciando o peso estrutural desse segmento na geração de renda. Mais recentemente, uma edição de 2025 do Atlas mostra que 43,7 milhões de pessoas vivem direta ou indiretamente da renda gerada por MPEs e MEIs, com 19,5 milhões de pequenos negócios ativos no país ao fim de 2024.
No mesmo período, o e-commerce deixou de ser canal complementar para se tornar eixo relevante dessa renda. O painel de comércio eletrônico do MDIC aponta que as vendas online de micro e pequenas empresas cresceram cerca de 1.200% entre 2019 e 2024, saltando de R$ 5 bilhões para R$ 67 bilhões no período. Não é um ajuste marginal: é uma reconfiguração completa da forma como o pequeno negócio captura valor.
Para quem já vende online, especialmente em B2C e D2C, esse contexto muda a régua de comparação. O competidor não é apenas a grande marca com orçamento robusto, mas também:
– a criadora que transformou sua estética de moda em marca própria;
– o chef que converteu audiência em assinatura de produtos;
– a artesã que vende coleções em drops pelo Instagram e WhatsApp.
Todos eles têm algo em comum: operam o digital como principal infraestrutura de renda, não como vitrine acessória.
Quem é o “empreendedor autoral” que ganha força até 2026?
Quando falo em empreendedor autoral, não me refiro apenas a criadores de conteúdo ou influenciadores. Falo de um tipo de operador de e-commerce, pessoa física ou jurídica, que:
Parte de um ponto de vista, não de um catálogo
O portfólio nasce de uma visão: de estética, de estilo de vida, de causa, de recorte cultural. O produto é a materialização dessa tese, não o contrário.
Constrói marca e comunidade em torno de si
A fronteira entre “marca” e “pessoa” fica mais porosa. O rosto do fundador aparece em anúncios, stories, live commerce e conteúdo de bastidor. A confiança vem dessa presença contínua.
Monetiza em múltiplos canais sobre a mesma narrativa
Loja própria, marketplace, redes sociais, assinatura, infoproduto, serviço personalizado: tudo se ancora na mesma história de marca e nos mesmos símbolos.
Usa ferramentas digitais para escalar, não para delegar visão
Automação, IA e plataformas de e-commerce entram como meios de execução, mas a curadoria e a identidade permanecem centralizadas no empreendedor.
Essa figura cresce sobre um pano de fundo comportamental importante. A pesquisa GEM Brasil 2023 mostra que, entre os empreendedores em estágio inicial, caiu a proporção dos que abrem negócios por necessidade e aumentou a participação dos que empreendem por oportunidade e motivados por “fazer a diferença no mundo”.
Ou seja: não é apenas “preciso de renda agora”, mas “quero construir um projeto de independência financeira que tenha a minha cara”. O comércio digital é o meio mais rápido e flexível para isso.
Três forças que empurram 2026 para o “ano do autoral”
Do ponto de vista de quem opera e-commerce hoje, há três vetores estruturais que ajudam a projetar 2026 como ponto de consolidação do empreendedor autoral.
1. Maturidade do e-commerce como infraestrutura de MPEs
Como comentei na abertura deste artigo, relatório do MDIC indica que, em 2024, o e-commerce nacional movimentou R$ 225 bilhões, com micro e pequenas empresas respondendo por cerca de 30% dos valores.
A Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABComm) também projeta que o faturamento do e-commerce brasileiro siga uma trajetória de crescimento na casa de dois dígitos até o final da década.
Para quem já vende online, isso significa:
– mais concorrência por atenção, mas também
– maior familiaridade do consumidor com compra digital
– e uma cadeia de suporte (pagamentos, logística, infraestrutura) muito mais acessível.
Quando a infraestrutura deixa de ser barreira, o diferencial passa a estar na narrativa, na proposta de valor e na capacidade de criar comunidade, justamente o território do empreendedor autoral.
2. Social commerce e redes sociais como principal vitrine
O avanço do social commerce no Brasil é inquestionável. Pesquisas amplas de mercado mostram isso claramente.
O relatório Retail Lives 2024, da Adyen, indica que 65% dos consumidores brasileiros utilizam redes sociais como parte do processo de compra, seja para descobrir, avaliar ou efetivamente adquirir produtos. A Deloitte mostra tendência semelhante: em seu estudo “Future of Retail 2024”, mais de 70% dos consumidores na América Latina afirmam ter feito ao menos uma compra diretamente por social commerce no último ano.
Isso posiciona Instagram, TikTok e WhatsApp como:
– canal de descoberta,
– canal de influência
– e, em muitos casos, canal primário de conversão.
Para quem opera no e-commerce, isso significa que a concorrência não acontece apenas nas prateleiras dos marketplaces, mas nos feeds, onde quem vence não é quem tem maior verba, mas quem tem narrativa e estética próprias.
O empreendedor autoral prospera justamente nesse terreno: ele carrega uma identidade semanticamente reconhecível e produz conteúdo que reduz CAC porque cria relação, não só alcance.
3. Ferramentas digitais baratas, mas visão cada vez mais cara
De um lado, plataformas de e-commerce, soluções de pagamento, automações e ferramentas de IA reduziram drasticamente o custo de teste de ideias. De outro, o custo de atenção e de aquisição de cliente (CAC) subiu, à medida que mais players competem pelos mesmos leilões de mídia e mesmos feeds.
Para negócios que já operam e-commerce, isso cria um paradoxo:
– Nunca foi tão barato lançar um produto ou coleção.
– Nunca foi tão caro transformar desconhecidos em compradores recorrentes.
Nesse contexto, o empreendedor autoral tem uma vantagem competitiva: ele opera com CAC diluído pela comunidade, porque seu conteúdo tem valor por si só. O digital vira um espelho da identidade da marca, e não apenas uma prateleira infinita.
Como o empreendedor autoral está moldando consumo, marca e redes sociais
Do ponto de vista de quem já vende online, o movimento autoral produz pelo menos quatro efeitos concretos na operação.
1. Consumo orientado por narrativa, não só por preço
Com maior compressão de margens no varejo digital, competir apenas por preço é um jogo cada vez mais difícil. A resposta do empreendedor autoral é deslocar o eixo da decisão do “quanto custa” para “o que isso diz sobre mim”.
Isso se traduz em:
– portfólios mais nichados (moda plus size autoral, marcas de bairro, categorias culturais específicas);
– drops e coleções limitadas, que geram urgência e senso de pertencimento;
– conteúdos de bastidor que justificam o valor (processo criativo, cadeia de produção, impacto local).
Para a operação de e-commerce, isso implica trabalhar branding e conteúdo como parte da estratégia de margem, e não só como “awareness”.
2. Marca com rosto e feed menos “institucional”
O aumento das compras via redes sociais pressiona as marcas a humanizar sua comunicação. Agora, a decisão de compra passa por:
– prova social;
– proximidade percebida com quem está vendendo;
– recorrência de contato em formatos curtos (reels, shorts, stories).
O empreendedor autoral coloca a própria imagem (ou a imagem de alguém da equipe) na linha de frente. O feed deixa de ser só catálogo e vira uma sequência de quadros recorrentes: reviews informais, comparativos, testes, erros, bastidores.
Para quem opera times de marketing e conteúdo, isso exige reorganizar o fluxo: menos peças estáticas isoladas, mais programação editorial contínua, quase como um canal de mídia próprio.
3. Redes sociais como laboratório de produto, e não só vitrine
Se redes sociais respondem por cerca de um quarto dos pedidos de PMEs online e influenciam mais da metade das compras digitais, elas deixam de ser apenas topo de funil.
O empreendedor autoral usa:
– enquetes e caixinhas para cocriar produtos;
– pré-venda e lista de espera em close friends ou grupos;
– testes de precificação e posicionamento diretamente em conteúdos.
Do ponto de vista de e-commerce, isso reduz risco de estoque, melhora giro e aumenta a aderência do mix de produtos à demanda real da comunidade.
4. Conteúdo como ativo de longo prazo
Com a profissionalização do digital, o conteúdo deixa de ser visto como “post do dia” e passa a ser tratado como:
– linha de produto (séries, quadros, playlists de conteúdos que podem ser reaproveitados);
– ativo de aquisição (peças que seguem gerando tráfego orgânico ou pago por meses);
– lastro de confiança (histórico visível de presença, consistência e aprendizado público).
Para negócios que já operam loja própria e marketplaces, isso redefine a relação entre investimento em mídia e investimento em conteúdo.
O que lojistas e indústrias que já vendem online podem fazer agora
Se 2026 tende a ser o ano do empreendedor autoral, 2025 é o período de ajuste fino. A partir da minha atuação com e-commerce, vejo quatro movimentos práticos para quem já está no jogo digital.
Identificar e fortalecer o “rosto” da marca
Pode ser o fundador, um especialista interno, um sócio ou até um time de creators vinculados à marca. O importante é ter pontos de vista claros, que se sustentem em séries de conteúdo e apareçam com frequência nas redes, lives e campanhas.
Reorganizar o planejamento de conteúdo como grade de programação
Em vez de pensar apenas em posts isolados, trabalhar com:
– quadros fixos (ex.: “decido seu look”, “comparando produtos”, “bastidores da produção”);
– formatos seriados que podem ser empacotados em diferentes canais (reels, shorts, blog, e-mail);
– conteúdos pensados desde o início com função comercial clara (gerar leads, ativar recompra, testar produto).
Usar redes sociais como canal de testes, e não só de divulgação
Estruturar rituais:
– rodadas mensais de pré-teste de produtos, preços e campanhas nas redes;
– acompanhamento sistemático da origem dos pedidos (quanto vem de social, quanto de buscador, quanto de CRM);
– integração entre insights de social e decisões de sortimento e estoque.
Rever métricas com uma lente autoral
Em vez de olhar apenas para ROAS e CPA, incorporar indicadores que capturam a lógica autoral, como:
– crescimento de comunidade em canais próprios (listas, grupos, base de clientes recorrentes);
– taxa de resposta e engajamento em quadros-chave;
– contribuição do conteúdo para reduzir CAC ao longo do tempo.
Esses ajustes não tiram profissionalismo da operação, ao contrário, criam um arcabouço mais robusto para que a autoria não seja improviso, mas estratégia.
Independência financeira como projeto, não como mito
Quando olhamos para o conjunto dos dados, recorde de abertura de pequenos negócios, crescimento acima de 1.000% das vendas online de MPEs em cinco anos e avanço acelerado do social commerce, fica claro que o comércio digital brasileiro já não é um experimento.
A discussão que se coloca para 2026 não é se haverá mais ou menos empreendedores, mas que tipo de empreendedor vai capturar a maior parte desse valor.
Minha aposta é que o empreendedor autoral, aquele que alinha renda, propósito e autonomia em torno de uma visão própria e que utiliza o e-commerce como infraestrutura central desse projeto, tende a ocupar um espaço cada vez maior no faturamento digital brasileiro.
Para quem já vende online, a pergunta estratégica deixa de ser “como aumentar o tráfego” e passa a ser: que história só a minha marca consegue contar? E como o meu e-commerce pode ser o principal veículo dessa independência financeira?