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De 50 ônibus nas Olimpíadas a líder global: o que o caso China ensina ao e-commerce brasileiro

Por: Lincoln Fracari

CEO da China Link

Fundador e diretor executivo do Grupo China Link. Especialista e consultor na área de negócios com a China e Ásia, empresário, investidor, escritor e palestrante. Formado em Administração pela Universidade Paulista e especializado em Marketing pela Fundação Getúlio Vargas.

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Quando Pequim inaugurou os Jogos Olímpicos de 2008, o foco do mundo estava na cerimônia e na demonstração de poder de organização. Mas, nos bastidores, um experimento menos visível antecipava uma transformação que redefiniria cadeias produtivas no mundo inteiro: 50 ônibus elétricos movidos a baterias de íons de lítio circulando pela capital. Era um teste real, em ambiente urbano, de uma tecnologia que estava longe de ser madura – e ainda mais distante de dominar mercados globais.

Ônibus elétricos circulam em Pequim durante os Jogos Olímpicos de 2008, com o Estádio Ninho do Pássaro iluminado ao fundo.
Imagem gerada por IA.

Quase 20 anos depois, a China concentra mais de 75% da produção mundial de baterias de íons de lítio e ultrapassou nove milhões de veículos elétricos vendidos em 2024. Para o e-commerce brasileiro, isso não representa apenas uma estatística industrial. Representa uma mudança estrutural no fluxo de produtos, tecnologia, inovação e competitividade que impacta diretamente vendedores, distribuidores e operadores logísticos.

Em 2001, quando Pequim foi escolhida como sede dos Jogos, a China praticamente não possuía indústria de baterias para veículos elétricos. Havia apenas dois fabricantes nacionais, competindo com gigantes consolidados do Japão e Coreia do Sul.

A virada ocorreu com o plano de 2006: um programa de ciência e tecnologia de 15 anos que usou a Olimpíada como laboratório, não como objetivo final. A estratégia era clara: criar um setor industrial de longo prazo capaz de sustentar energia, transporte, manufatura e exportações – pilares que, anos depois, influenciariam boa parte das categorias mais vendidas no comércio digital.

Três pilares explicam a ascensão chinesa – e todos impactam o e-commerce brasileiro

1. Proteção de mercado voltada à inovação

As regras técnicas aplicadas nos veículos elétricos que circularam na Olimpíada não foram aleatórias. Elas criaram um ambiente no qual fabricantes nacionais ganharam tempo para escalar produção e amadurecer tecnologia antes de enfrentar competição internacional direta.

Para o varejo digital, esse movimento se traduz em um efeito muito concreto: ciclos mais rápidos de reposição, preços menores e variedade crescente de produtos que dependem de baterias e componentes eletrônicos.

2. Competição interna agressiva e aceleradora

Ao contrário do modelo ocidental de poucas empresas dominantes, a China permitiu que centenas de fabricantes disputassem o mercado ao mesmo tempo. Em determinado momento, havia quase 500 marcas automotivas tentando sobreviver.

    Esse darwinismo industrial reduziu prazos de desenvolvimento e acelerou lançamentos. Para quem opera no e-commerce brasileiro, isso significa lidar com ciclos de inovação mais curtos e com o risco constante de obsolescência de estoque.

    3. Formação massiva de capital humano

    Em vez de concentrar esforços em discurso, a China investiu pesadamente em engenharia, pesquisa e capacitação técnica. Isso gerou uma força de trabalho capaz de transformar conhecimento acadêmico em produto industrial – rápido, barato e em escala.

      Esse efeito respinga em categorias inteiras do comércio eletrônico brasileiro, que dependem de:

      – baterias mais eficientes,

      – eletrônicos com menor consumo energético,

      – dispositivos IoT mais robustos,

      – equipamentos logísticos com melhor autonomia.

      É essa evolução que impulsiona novas categorias no Brasil e redefine expectativas de consumidores.

      Escala: o fator que reorganiza cadeias globais

      Em 2014, a China havia vendido apenas 75 mil veículos elétricos. A projeção para 2026 é de 32,3 milhões – quase metade classificados como veículos de “nova energia”. Hoje, mais de 40 milhões circulam no território chinês.

      Essa escala não impacta apenas o setor automotivo. Ela redefine padrões de eficiência, fortalece cadeias produtivas, cria clusters industriais e acelera o lançamento de produtos eletrônicos que chegam às lojas brasileiras meses depois.

      Para o e-commerce, isso significa um fluxo constante de inovação e pressão competitiva sobre categorias que dependem direta ou indiretamente dessa cadeia de energia.

      O que isso muda no e-commerce brasileiro (na prática)

      1. Redução de preço e aumento de oferta

      A produção em larga escala exerce pressão global sobre preços. Produtos que dependem de baterias, motores elétricos, chips de controle e componentes embarcados tendem a chegar ao Brasil com custos menores, ampliando margens e permitindo expansão de sortimento.

      2. Ciclos de produto mais curtos

      A velocidade de lançamento no ecossistema chinês exige que varejistas brasileiros revisem estratégias de reposição, vida útil de catálogo e velocidade de atualização de portfólio. Produtos que têm alto giro tecnológico podem se tornar obsoletos em menos de um ano.

      3. Emergência de nichos impulsionados pela transição energética

      A expansão global da mobilidade elétrica e do armazenamento de energia cria novos nichos que se tornam relevantes no comércio digital, entre eles:

        – acessórios para veículos elétricos,

        – soluções de energia portátil,

        – mobilidade leve,

        – dispositivos com autonomia ampliada.

        Esses mercados ainda estão em fase inicial no Brasil, mas apresentam forte potencial de crescimento.

        4. Pressão sobre fornecedores tradicionais

        Quem depende apenas de fornecedores europeus ou norte-americanos enfrenta ciclos mais lentos, menor variedade e custos operacionais maiores. O contraste com o ritmo asiático tende a se aprofundar e afetar preços, competitividade e previsibilidade de entrega.

          O paradoxo da superprodução: risco para a indústria, oportunidade para quem opera comércio digital

          A indústria chinesa opera hoje com margens de 4,3% – metade do que era em 2017 – e enfrenta excesso de capacidade. Isso força expansão internacional mais acelerada.

          Para o varejo brasileiro, o efeito é duplo:

          – maior disponibilidade de produtos avançados,

          – maior necessidade de análise técnica para evitar inconsistências de qualidade.

          Em suma: a oportunidade existe, mas exige maturidade na leitura de mercado e avaliação técnica.

          O que Pequim 2008 realmente ensina ao e-commerce brasileiro

          Os 50 ônibus elétricos que circularam durante os Jogos não eram uma ação simbólica. Eram o primeiro movimento de uma estratégia de décadas. A China não improvisou – executou.

          Para o e-commerce brasileiro, a lição é direta: quem compreende movimentos estruturais consegue antecipar ciclos, planejar estoque com inteligência e adaptar portfólios antes da concorrência. Quem não compreende, reage tarde e paga mais caro.

          Em um mercado global cada vez mais acelerado, observar esses sinais não é futurismo. É sobrevivência estratégica.