Tarde da noite, quando estamos fazendo compras e olhamos para aquele pote de sorvete no congelador, não pensamos em qual caminho ele trilhou para chegar até lá. Mas, por trás de cada freezer, existe um mercado secundário que determina o que você pode ou não comprar.
As “taxas de gôndola” (também conhecidas como “slotting allowances” ou “slotting fees”) são espécies de “impostos” que a indústria alimentícia dos Estados Unidos paga aos varejistas para seus produtos aparecerem nas prateleiras.
O custo desse negócio paralelo pode chegar a milhões de dólares ao lançar um produto nas lojas – e isso faz com que os supermercados e as nossas dietas sejam moldados muito antes de termos possibilidade de escolhermos por nós mesmos o que comprar.
É fácil pensar que essas taxas mostram como os supermercados estão aparelhados – tanto contra clientes quando pequenos produtores. Mas o debate é intenso, com fortes atores e bons argumentos para os dois lados.
Contra o pagamento
“Acordos nos bastidores entre lojas e indústrias de alimentos também moldam os supermercados de hoje”, afirmou Gary Rivlin no seu estudo para o Centro para Ciência de Interesse Público (CSPI, na sigla em inglês).
No texto, conforme Rivlin detalha a história de uma empresa produtora de sorvete, chamada Clemmy’s, o seu argumento torna-se claro: supermercados cobram taxas significativas antes dos seus comerciantes verem os produtos nas prateleiras.
O pagamento inicial para colocar um novo sorvete no mercado pode chegar a U$ 30 mil – isso para aparecer em apenas 350 lojas. Essas taxas existem para um amplo leque de categorias, desde o Clemmy’s até salgadinhos e refrigerantes, sem mencionar o espaço próximo aos caixas.
Para quem se opõe a essa prática, a implicação é clara: o poder do varejo reduz a competição e torna mais difícil para pequenos negócios competir com grandes players. Essas vantagens para as maiores companhias combinam-se com a sua habilidade de adquirir prateleiras suficientes para moldar efetivamente o layout da loja.
Os estabelecimentos comerciais também cobram altos preços para produtos sazonais e displays promocionais que aparecem ao final dos corredores, tornando ainda mais complicado para pequenos fornecedores disputarem espaço.
Para piorar: CSPI e outras entidades também argumentam que as “slotting fees” fizeram empresas de “junk food” (salgadinhos, produtos gordurosos, refrigerantes, doces, balas) saltarem às prateleiras, incentivando consumidores a escolherem opções menos saudáveis.
A antipatia a taxas é compartilhada, naturalmente, por diversas empresas produtoras de alimentos. Embora muitas delas hesitem em comentar o assunto publicamente, eles vêem essa cobrança como uma forma de extorsão.
A favor das taxas
Um texto de Mary Sullivan, pesquisadora da Universidade de Chicago, sobre a cobrança do tributo, escrito em 1997, afirmava que essas taxas são parte integrante do varejo moderno.
O argumento mais atraente ilustra como as “slotting fees” parecem ter começado na década de 1980, ao mesmo tempo em que os varejistas introduziram dramaticamente mais produtos nas prateleiras. Graças ao desenvolvimento de tecnologias como scanners, ficou mais fácil criar SKUs (código do produto) sem esforço extra. Ou seja, a indústria alimentícia pode enviar um número cada vez maior de produtos extras às lojas.
Aí, criou-se o problema. A Comissão Federal de Comércio (FTC, na sigla em inglês) afirmou, em um review sobre o tema, em 2003, que entre 80% e 90% dos novos produtos não estavam sendo vendidos. E, apesar da disponibilidade de todos esses novos itens, os espaços nas prateleiras continuavam escassos.
Em categorias como de sorvetes, por exemplo, onde os congeladores tornam os espaços ainda mais caros, o problema foi até exagerado.
A cobrança de taxas de gôndolas surgiu na metade da décadas de 1980 como uma solução para o problema. Elas ajudaram a diminuir alguns riscos para os lojistas, mostrando que um novo produto poderia fazer sucesso, e auxiliaram a limitar a proliferação de artigos.
Em um texto do diretor editorial da revista especializada “Frozen & Refrigerated Buyer”, Warren Thayer diz ter se convencido de “que muitos fornecedores estavam lançando novos itens para ver se algum deles prosperava. Sem pesquisas de mercado, sem suporte ao consumidor, nenhum estudo sobre os inconvenientes e custos para os lojistas se esses produtos falhassem”, explicou.
Esse é o mesmo argumentos dos supermercados. “As taxas para armazenamento foram instituídas no momento em que a indústria alimentícia experimentava uma explosão no número de novos produtos sendo trazidos por varejistas ao mercado, para seus clientes”, afirmou um porta-voz do Instituto de Marketing de Alimentos dos Estados Unidos.
“[Ao considerar] Espaços da prateleira como comodidades precificadas e limitadas, a prática foi criada para prover aos vendedores de alimentos e para a indústria alimentícia meios múltiplos e contratuais de determinar o custo para levar novos produtos e suas extensões para as prateleiras dos supermercados”, completou.
Outros estudos ecoaram essas conclusões. Um influente – e controverso – artigo apresentado em 2005 por K. Sudhir e Vithala R. Rao argumenta que as “slotting fees” eram a melhora forma de alocar os espaços vazios das prateleiras. Após estudar a situação, a FTC avaliou que era necessário realizar novas pesquisas. Os estudos da FTC também mostraram que as taxas de gôndola tornam-se mais caras conforme as prateleiras ficam mais escassas, como no caso dos sorvetes.
Mas isso certamente não é um consenso. O Bureau de Álcool, Tabaco, Armas de fogo e Explosivos baniu essa cobrança para o licor, e, em diversas pesquisas, pequenos fornecedores disseram repetidamente que os “impostos” atrapalhavam a competição.
Dessa forma, as taxas se converteram em uma grande controvérsia: quanto mais você conhece, mais os supermercados parecem aparelhados; ao mesmo tempo, quanto mais você se aprofunda, mais esse aparelhamento se mostra necessário.
E existe alguma alternativa para a cobrança? Talvez.
É possível ver pontos positivos e negativos nessas cobranças: lojistas, operando com alto volume e margens pequenas, precisam de uma forma de reduzir riscos e cobrir custos. Para os fornecedores, porém, parece uma extorsão de marca que favorece os grandes conglomerados em detrimento a companhias que não conseguem pagar taxas tão altas. Além de uma nova regulação, existe uma forma melhor de lidar com o mercado por trás do… mercado?
Uma solução possível pode ser mais e melhores testes de venda. Se os lojistas efetivamente testarem seus produtos em um pequeno número de lojas, poderão estimar as vendas sem taxar os fornecedores ou arriscar preciosos espaços na prateleira em milhares de lojas. Além disso, torna-se mais fácil mensurar o sucesso ou fracasso de um produto graças à tecnologia. Pode ser uma opção viável.
A cobrança da taxa, porém, não é universal. Whole Foods, Costco, BJ’s Wholesale e Walmart, todas lojas americanas, não taxam os fornecedores (embora a indústria perceba que essas lojas podem ter uma negociação muito agressiva nos preços do atacado, por outro lado, ou ainda cobrar outras taxas).
Um outro porta-voz, dessa vez do Walmart, me disse que, “diferentemente de outras lojas, o Walmart não cobra as ‘slotting fees’. Nós trabalhamos com os nossos fornecedores todos os dias para servir os clientes.”
Lojistas estão respondendo a essa prática, também, investindo em marcas próprias, o que os permite colocar um ponto final às questões de localização nas prateleiras.
Curiosamente, esses prós e contras se estenderam para uma gama de outras indústrias e até outros países. Você encontrará as “slotting fees” nas Barnes & Noble e grandes lojas. Elas são também uma realidade no Reino Unido e na Austrália.
O mundo secreto das negociações entre lojistas e fornecedores é difícil de se vislumbrar, mas em 2009 nós tivemos uma pista graças a um balanço da Safeway, que mostrou como os supermercados fazem dinheiro. Embora isso represente um percentual relativamente pequeno da receita total, as taxas de armazenamento renderam U$ 130 milhões em 2008. A próxima vez em que você visitar um mercado, fique atento, pois existem diversos preços por trás daquilo que você compra.
Republicado com autorização do autor. Originalmente disponível em: http://www.vox.com/2016/11/22/13707022/grocery-store-slotting-fees-slotting-allowances