Recentemente, num encontro sobre shopping virtual em São Paulo, uma analista do Forrester Research, Zia Widger, citou três notáveis cases brasileiros, entre os quais o Pão de Açúcar Delivery. Este artigo visa explicar as operações típicas do “supermercado sem sair de casa” (delivery) e seus aspectos diferenciais em relação às lojas virtuais convencionais.
Há vários modelos operacionais para compras on-line de alimentos, bebidas, higiene e limpeza, frios etc. A principal diferença entre eles é a exclusividade do estoque. Há operações que operam a partir de um ou mais centros de distribuição totalmente dedicados aos clientes delivery. Há outras, a maioria no Brasil, que operam a partir de uma loja convencional, onde o estoque é compartilhado entre os clientes do delivery e os clientes da loja. Há grande controvérsia quanto ao modelo mais conveniente; aqueles que nasceram independentes das lojas físicas tiveram a vantagem de não se entreterem com restrições corporativas (interfaces, precariedade no controle de estoque, condições operacionais adversas etc.), no entanto têm muitas dificuldades no aumento da abrangência do atendimento.
Neste artigo, nos referimos somente às operações de delivery associadas a uma loja física – é o que mais se diferencia em relação ao comércio eletrônico tradicional, e também o mais capitalizado. Neste modelo, as operações podem ser classificadas de acordo com o sortimento disponível, do tamanho do pedido e do tempo de entrega. Quanto menor for o tempo de entrega, menor deverá ser o sortimento, portanto menor o tamanho do pedido.
O delivery assemelha-se muito à comercialização de medicamentos por meio da internet. Ambos têm: uma única web store, controle precário de estoque, vários pontos de distribuição, modalidades de pagamento contra entrega; ambos também administram suas frotas. Eles situam-se a meio termo entre a loja física e a loja virtual. Da loja virtual recebem o pedido e contam com a loja física para atendê-los.
1. Atendimento regional – cada ponto de distribuição tem seu mercado
O delivery faz parte do e-commerce; no entanto, enquanto o mercado do comércio eletrônico é, em tese, ilimitado geograficamente, o mercado do delivery é regionalizado, assemelhando-se ao mercado de uma loja física – atendem-se somente clientes ao redor do ponto de distribuição. Cabe à web store escolher a loja (ou ponto de distribuição) que irá atender ao pedido de acordo com o endereço de entrega indicado pelo cliente.
2. Características dos itens ofertados pelo delivery
Do ponto de vista operacional, a oferta do delivery pode ser classificada em três grandes agrupamentos de itens: secos, perecíveis e “caros”. A perecibilidade, a unitização, o fatiamento (desunitização) e a unidade de precificação são os grandes responsáveis pelas dificuldades logísticas.
A perecibilidade dos itens obriga à redução do prazo entre a separação e a entrega, manutenção do controle de temperatura nas áreas transitórias de armazenamento e à desunitização dos volumes quando do carregamento.
A unitização refere-se à preparação de embalagens padronizadas de todos os itens que são oferecidos a granel nas lojas convencionais (cenoura, tomate, batata etc.).
O fatiamento – inverso da unitização – refere-se às peças que são transformadas em unidades (presunto, salame etc.).
Há itens precificados por peso, portanto, sujeitos a pequenas variações quando da embalagem (por exemplo, picanha), podendo afetar o valor original do pedido.
Além das dificuldades inerentes aos itens, este modelo operacional sofre com a ausência de dados necessários à operação on-line tais como peso, volume, indicativo de precificação etc.
3. Condições operacionais – layout e estrutura de armazenagem
Os itens vendidos pelo delivery são coletados na loja física associada. O layout da loja, a distribuição das mercadorias pelos corredores e prateleiras, o fluxo desejado para as mercadorias vendidas são projetados para atender clientes da loja física e não aos separadores do delivery. Além disso, como cada metro quadrado da loja é destinado prioritariamente para a exposição de produtos, as áreas de conferência, embalagem e expedição do delivery situam-se fora da loja, alongando a trajetória dos separadores.
4. Clientes
Os clientes do delivery são recursivos, regionalmente circunscritos e de alta renda. Este perfil de clientes fundamenta todos os procedimentos do delivery. Enquanto o comércio eletrônico no Brasil ainda é orientado por produto (70% dos clientes compram apenas uma por ano!), o delivery é orientado para o cliente (cada cliente compra 12 ou mais vezes ao ano). A palavra chave neste tipo de negócio é flexibilidade que, como sabemos, conflita com produtividade. Desta contradição, como veremos, derivam severas dificuldades operacionais.
5. Capacidade de expedição
A capacidade de atendimento de um ponto de distribuição delivery é determinada pela frota e pela capacidade de atendimento físico de pedidos limitada pela loja associada. A limitação de capacidade de expedição por loja impõe rígido controle na aceitação dos pedidos e promessa de entrega, restrição somente percebida pelas lojas virtuais convencionais a partir do desastre do Natal de 2010.
A frota não é comum, pois precisa ser constituída de veículos especiais dotados de compartimentos de cargas com três temperaturas diferentes. Quanto ao atendimento físico dos pedidos, há vários fatores limitantes: ciclo de separação da carga seca (grupo onde se concentra a maior parte dos itens), o congestionamento dos corredores (concorrência com clientes da própria loja), o ciclo de reposição das gôndolas (a quantidade de unidades por item é limitada pela variedade e exiguidade de espaço), a restrição de áreas de conferência e expedição, etc.
6. Pedido de venda
Em virtude das restrições de capacidade, cada ponto de distribuição delivery atende a poucos pedidos em comparação com o comércio eletrônico; todavia, cada pedido contem muitos itens (mais de 70, em média) e mais de uma unidade do mesmo item (chegando a mais de 130 unidades/pedido). Para se ter uma ideia do trabalho de separação, suponhamos de uma loja atenda 500 pedidos por dia, logo, ela deve separar cerca de 500 x 130 = 65.000 unidades/dia! Caso comparássemos com uma loja virtual convencional, esta quantidade de unidades separadas equivaleria, grosso modo, a 40.000 pedidos.
7. Alterações no curso do atendimento
Dada a natureza da compra, é esperado que o cliente, após ter feito o pedido, cancele, adicione, altere ou troque a quantidade de itens, cancele ou reagende o pedido. Estas possibilidades de alteração no pedido no curso do atendimento são típicas do delivery e trazem muita complexidade ao processo de atendimento.
Para fazer frente a esta inevitável submissão aos desejos dos clientes, há necessidade de controlar detalhadamente o fluxo do pedido, bem como saber exatamente o conjunto de procedimentos em função do relacionamento entre estágio de atendimento e possíveis ações dos clientes. Percebe-se que a regionalização do mercado, a flexibilidade do atendimento, a natureza dos itens e especialidade da frota não permitem ganho de escala ao delivery, condicionamentos inexistentes no comércio eletrônico tradicional.
8. Processo de atendimento – o roteiro do pedido
Ao contrário do comércio eletrônico, o pagamento é efetivado após o faturamento devido à instabilidade do pedido ocasionada tanto pelo cliente como pela própria loja. Caso o meio de pagamento seja cartão, o pagamento será imune às possíveis alterações do pedido, porém, se o pedido for contra entrega, qualquer alteração de valor do pedido provocada internamente (falta de estoque, possibilidade de troca por similar, alteração no valor devido ao excedente de peso) implica a necessidade de contato com o cliente.
Uma característica importante do processo de atendimento é a programação da expedição se identificar com a roteirização da entrega devido à responsabilidade da entrega ser do próprio delivery.
9. Estoque
O modelo operacional de que estamos tratando controla estoque de modo precário, visto que compartilha o estoque com os clientes da loja associada. Esta é a maior causa da perda de produtividade e, por conseguinte, de capacidade. Aceitar pedidos sem reserva automática de estoque gera a necessidade de busca de unidades em outras lojas, ou contato com cliente para troca por similar ou aceitação de falta.
A contrapartida desta dificuldade é a possibilidade de expansão em sinergia com a rede de lojas físicas. Este conflito somente será resolvido quando a quantidade de clientes for maior e mais concentrada que a atual.
10. Separação e Embalagem
A separação é descentralizada, cada setor (carne e aves, frios, FLV etc.) funciona como um depósito dotado de infraestrutura completa de conferência e embalagem, inclusive com armazenagem especial de acordo com a natureza de seus itens.
Pelo fato do pedido ser constituído de muitos itens de pequeno valor, são usadas folhas de separação. Somente a conferência é feita a partir da leitura dos códigos EANs das unidades ou de etiquetas especiais de itens precificados por peso.
Para o delivery, a completude do atendimento do pedido é fundamental, caso contrário o benefício do cliente em evitar a ida ao supermercado será perdido. Esta obrigatoriedade tem seríssimas decorrências, levando-se em conta que cada pedido tem, em média, 70 itens.
Ao contrário do e-commerce tradicional, um pedido do delivery corresponde a muitos volumes identificados com o número do pedido, implicando mais atenção ao carregamento e entrega ao cliente.
11. Pagamento
Dado que o pedido pode ser alterado no curso de seu atendimento, o pagamento sucede a emissão da nota fiscal. Uma particularidade comum no Delivery é o pagamento por boleto a prazo, prática que deve se estender ao comércio eletrônico reativando a antiga análise de crédito.
12. SAC – parte integrante do processo de venda
O atendimento ao cliente é mais orientado para a manutenção do pedido do que ao pós-venda; aliás, a flexibilidade do atendimento tem como objetivo eliminar os problemas pós-venda. A comunicação cliente-delivery é importante nos dois sentidos: do cliente para o delivery ao pedir o cancelamento ou reagendamento do pedido, inclusão, alteração de quantidade ou troca de item; e do delivery para o cliente, para comunicar a falta de um item e alterações de preço quando pedido contra entrega.
Há grande interação entre o SAC e o atendimento, dado que as alterações no pedido se dão durante o processo de atendimento. Dá para perceber que o SAC não é simplesmente um CRM, é parte integrante e indispensável do processo de venda.
13. Expedição e carregamento
A entrega é uma atividade crítica para o delivery, razão pela qual ele, em geral, não trabalha com terceiros. O delivery tem a responsabilidade pela produtividade dos veículos e formação de carga, atividades que afetam a programação da separação. Ainda como atividades da expedição, há necessidade da emissão de dois documentos: 1) lista de entregas com dados para facilitar a entrega (número de volumes) e indicativo do tipo de pagamento na expectativa de receber dinheiro ou cheque; 2) listagem das alterações sofridas pelo pedido, com a finalidade de explicar ao cliente a diferença de valor entre o pedido original e o faturado.
O frete é uma variável importante, seu valor é um dos determinantes do tamanho do pedido, consequentemente, da frequência de compra.
14. Retorno do veículo
Em relação ao retorno do veículo, devem-se conferir os valores recebidos segundo informação constantes na listagem de entrega, baixar as entregas realizadas atualizando o conta corrente dos motoristas e ajudantes pagos em função do número de entrega.
15. Conclusões
Finalizando, resumo algumas conclusões sobre o delivery:
1. É uma modalidade de comércio eletrônico na fronteira de canais de venda: loja física e virtual. Estar nessa zona fronteiriça gera muita indecisão.
2. Ter um centro de distribuição dedicado ou servir-se de lojas físicas com ponto de distribuição é uma questão aberta. O primeiro modelo beneficia a performance da logística interna (redução de custos operacionais e precisão do atendimento) e o segundo é beneficiado pela maior facilidade de expansão e sofisticação dosortimento (aspecto fundamental de atração de clientes).
3. Seu mercado é dependente do ponto de distribuição e voltado para o segmento urbano de alta renda.
4. É orientado para o cliente, ao invés de ser orientado para produto, consequentemente obriga-se a um alto grau de flexibilidade.
5. Ao incluir o transporte, seu grau de verticalização aumenta e, consequentemente, seu gerenciamento é mais complexo.
6. O atendimento físico do pedido é complexo e exige amplo suporte sistêmico:
6.1. Os pedidos têm muitos itens e o índice de “pedidos perfeitos” deve atingir 98%.
6.2. A inclusão de itens perecíveis determina procedimentos operacionais específicos, encurtamento do prazo de atendimento e sequenciamento da separação.
6.3. Há atividades preparatórias e unitização e desunitização de itens para padronizar embalagens.
6.4. As possibilidades de alteração do pedido no curso do atendimento implicam monitorar cada uma das atividades componentes do processo.
6.5. A possibilidade de pagamento contra entrega ligada à flexibilidade do atendimento implicam um fluxo de pedido muito particular.
7. O SAC é predominantemente atuante no processo de atendimento, passando a ter funções operacionais.
8. A expansão de seu mercado está intimamente ligada à concentração da população de alta renda (troca do valor obtido pelo uso do tempo de compras em outras atividades pelo valor do frete), às dificuldades de mobilidade urbana, à insegurança etc.