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Vestuário no e-commerce: multicanal

Por: Fernando Di Giorgi

é ex-sócio fundador da Uniconsut Sistemas, empresa especializada em back-office para grandes lojas de e-commerce. Fomado em Matemática pela USP, pós-graduado em Administração pela FGV e em Análise Econômica pela FIPE, mestre em Economia pela PUC-SP.

Este artigo versa sobre vestuário e, especificamente, sobre lojas virtuais originárias de lojas físicas, fruto de entrevistas com lojistas do Brás e do Bom Retiro, em São Paulo.

Para se ter uma ideia do mercado de vestuário do Brás, basta dizer que, em nove quadras, há seis shoppings centers de grande porte, acoplados a hotéis e praça de alimentação, além de área destinada a estacionamento de ônibus provenientes de todas as partes do País. A soma do faturamento das lojas dessas nove quadras corresponde a 13% do faturamento brasileiro de vestuário.

A importância da tradição comercial

Primeiramente, o que salta aos olhos é a importância da tradição na condução desse tipo de negócio. As lojas, cujos donos foram entrevistados, foram fundadas há mais de 40 anos por imigrantes árabes e judeus, portanto, não estamos nos referindo apenas às tradições comerciais adquiridas no Brasil, mas de uma longa história que se perde no tempo.

Para o entrevistador, além de o comando passar dos pais para os filhos, essas tradições mais se evidenciam no respeito aos conhecimentos empíricos dos fundadores (o que em linguagem acadêmica seriam os conhecimentos tácitos ou não codificados); na disciplina e ética do trabalho – os filhos, desde jovens sacrificavam fins de semana e férias escolares trabalhando com os pais na loja, sem prejuízos dos estudos; na perseverança, típica dos imigrantes, tendo a consciência de que um crescimento financeiramente seguro é lento e angustiante; na concentração de esforços no negócio, adaptando-se às sucessivas mudanças no mercado (terceirização da produção, concorrência estrangeira, novos canais de venda etc.); nas habilidades de gestão comercial sem uso dos atuais sistemas de informação ao “fazer dinheiro com mercadorias” e, por fim, na sabedoria no trato com fornecedores e clientes, descartando elogios e preocupando-se com as críticas.

Canais de venda

Não foram os fundadores que tiveram a percepção da inevitabilidade de entrarem no e-commerce, mas foram eles, a seu tempo, que fizeram modificações similares e não menos importantes. Por exemplo, a venda porta-a-porta por revendedoras, a venda por atacado, a constituição de franquias. Foram tais iniciativas que deram origem ao catálogo, a um passo para sua futura virtualização.

A diversificação de canais aumenta o nível de estabilidade das vendas, a possibilidade de escoamento de mercadorias menos demandadas (outlet) e extensão de sua abrangência do mercado (rede de revendedoras, atacadistas, expansão da rede e franquias). As diferenças de tais iniciativas para o e-commerce são profundas: a intensificação tecnológica, a impessoalidade da venda, a composição de custos e o marketing, afastando os fundadores desse canal.

A participação da loja virtual no faturamento global ainda é pequena, e há condescendência em relação à rentabilidade. Tem-se como princípio que é necessário contar com esse canal, aprender a trabalhar com ele e integrá-lo aos pré-existentes. O convívio entre loja física e virtual traz informações que fogem ao pensamento comum: há maior concentração de vendas da loja virtual onde há loja física, há clientes exclusivos da loja virtual, a loja virtual não tem prejudicado a imagem da marca. Devido ao faturamento ainda ser pequeno, os conflitos de canal ainda não se manifestaram com intensidade, e a participação em markeplaces ainda é vista com desconfiança, principalmente devido aos custos.

Além dos custos, outro obstáculo para a expansão do e-commerce ainda é a necessidade de intermediários físicos para o escoamento das mercadorias. Isso se deve à extensão do mercado total, à regularidade do consumo e ao esforço dos produtores em encurtar o ciclo de vida das mercadorias.

Os intermediários, pessoas físicas ou jurídicas, que visitam as pequenas lojas físicas munidos de mostruário e tabela de preços ou vendem diretamente às famílias com as mercadorias em mãos. Ao prescindir deles, perdem-se vendas; ao mantê-los cai o lucro unitário. Para o produtor sem marca relevante, o que interessa é maximizar o lucro total a partir do aumento da quantidade vendida.

O intermediário não poderia ser dispensado a partir de uma venda direta pela loja virtual, seja para o consumidor final (B2C) ou para o varejo (B2B)? A resposta a essa questão é complexa. Por um lado, o lucro do produtor seria maior pelo encurtamento da cadeia de distribuição; por outro, há o temor de que a fase de transição de um modelo de distribuição para outro seja mortal, pois implica enfrentar mudanças de gestão (controle do estoque e na qualificação do pessoal), a resistência em investir em TI – ponto fraco de setores muito concorrenciais e, sobretudo, a incerteza quanto à capacidade de gerenciar o convívio harmonioso entre a venda via Internet e a revenda, visto que esta última continuará existindo.

Itens e produção

Esse mercado é caracterizado pelo elevado número de itens (modelo, tamanho e cor), pelo reduzido ciclo de vida (pelo menos duas coleções anuais), pela despadronização de tamanho, pela informalidade tanto dos fornecedores (cuja consequência tem sido a crescente terceirização da produção no País ou no exterior) quanto da concorrência, pela fragilidade das barreiras à entrada de concorrentes, pela incerteza do planejamento de vendas, visto que a produção total é feita antes do período de venda, pela excepcionalidade do ganho de escala (apenas em jeans e camisetas há produção em massa onde o Brasil tem sido competitivo).

Considerando a extensão da coleção e que a produção tenha sido feita com antecedência, não há um modelo campeão de venda, já que a reposição é praticamente impossível. Além disso, não há como aproveitar-se das reclamações, com exceção de defeitos de modelagem, que poderão ser corrigidos na coleção seguinte.

Uma constatação importante é que a regularidade biométrica dos consumidores difere por classe de item: as blusas são mais padronizadas do que calças, o que dificulta a venda delas pela Internet. Além disso, valendo para todos os itens, há distorção de cor quando exibida pelo site, dificultando a combinação de cores, elemento fundamental para a compra.

Sistemas

O front é indispensável, e há um mercado fornecedor para todos os gostos e preços. O back-office ainda é pouco usado. Há muitas razões para isso: a primeira delas é que a redes de lojas físicas já se utiliza de um ERP e insiste em usá-lo também para a loja virtual; a segunda, aí a maioria, é que o back-office é caro por si e exige funcionários e infraestrutura especializados.

No primeiro caso, os ERPs que atendem ao mercado de lojas físicas ainda não têm a funcionalidade necessária para operar completamente o e-commerce gerando duplicidades funcionais e aumentando custos. No segundo caso, a maioria das lojas ainda não atingiu a escala mínima necessária para compensar o custo mensal de um back-office com poupança de mão de obra e fornecimento de instrumentos de gestão mais precisos, além de não comportar as funções clássicas das lojas físicas.

Os ERPs que dominam o mercado de redes de lojas físicas não poderiam facilitar a integração com os back-offices para gestão integrada de lojas físicas? A resposta, infelizmente, é não. Há uma questão estratégica atrás disso: se os ERPs facilitassem a integração, eles estariam abrindo seu mercado para terceiros com grande dificuldade de reversão futura.
Um dos problemas clássicos da falta de integração sistêmica entre a loja virtual e as físicas é o estoque.

Têm sido usadas duas formas de contorno para se evitar a venda sem estoque: colocar à disposição do site apenas uma parte do estoque de uso comum e segregar os estoques – esta usada por lojas que já se utilizam de ERP para gestão da rede.

Custos

A rentabilidade da loja virtual é menor do que da loja física. Em um levantamento um tanto grosseiro, mas não desprovido de sentido, a composição de custo de uma loja virtual de vestuário apresenta os seguintes dados em relação ao faturamento: 10% de propaganda, 8% de transporte, 3% de aluguel do front, 10% de despesas com pessoal, 2% de despesas financeiras e 5% de despesas com a reversa (a devolução é, em parte, descartada). Isso somado perfaz 38%.

Uma frase que ouvi de um lojista tradicional que combina sua loja física com a virtual resume a diferença de custos: “o aluguel mensal, com duração de 4 anos, de um ponto no Brás (8 m de frente e 25 m de fundo) custa 40 mil com luvas de 800 mil, perfazendo perto de 57 mil/mês (quase equivalente à despesa com propaganda na loja virtual); o faturamento não é inferior a 500 mil/mês, sem ter que gastar em transporte, com o front, com a reversa e com menos pessoal”. Como sair dessa situação?

A crença é que esse quadro, obrigatoriamente, deverá ser alterado e que ele independe de cada lojista individual, mas de toda a cadeia de serviços do e-commerce. Com isso, dá para se ter uma ideia da dificuldade da operação unicamente restrita à loja virtual e da inevitabilidade da integração entre os canais.

Marca

Quem andar pelo Brás entenderá perfeitamente a importância da marca como instrumento de defesa da “invasão chinesa”. As fábricas chinesas subsidiam a distribuição de suas confecções pelo mundo; não raro, vê-se um grupo de chineses negociando um ponto de venda ou trabalhadores chineses reformando lojas. Isso sem levar em conta a multidão de consumidores experimentando o AliExpress, o novo líder do mercado nacional em visitação.

A única saída que os lojistas enxergam para enfrentar a concorrência chinesa é a diferenciação pela marca através da criatividade na modelagem (estilo), na qualidade, no atendimento e, sobretudo, um grande investimento em propaganda, sendo este o fator mais restritivo.

Uma das iniciativas dentro do marketing digital do vestuário é o uso de blogueiros. É útil ressaltar duas sugestões sobre o blog. É melhor que ele seja controlado por uma agência – parece um custo inútil, mas compensa pela disciplina que ela impõe; caso contrário, o blog morre por inanição.

Outra, mais interessante, é que o blogueiro mais interessante para o público pode não ser o estilista, mas o próprio lojista com sua longa experiência de frente de loja; a redação pode ser melhorada pela agência, mas o conteúdo e a objetividade são fundamentais.

Política comercial

Vestuário é uma mercadoria sazonal – ao final de estação, ela perde preço, razão pela qual, para efeitos de controle, os lojistas recomendam sempre contabilizar separadamente os preços originais dos descontos a fim de analisar a coleção integralmente, segregando por modelo.

Em geral, mantém-se por um período a margem cheia (40 dias, por exemplo), reduzindo gradualmente a margem com descontos no decorrer do tempo. Uma das lojas físicas serve de escoamento dos excedentes da coleção sem prejudicar a imagem da marca.

Nas redes de lojas físicas, há maior rigor, todas as lojas praticam o mesmo preço ao mesmo tempo, inclusive a virtual (mantendo-se simultaneamente uma outlet também virtual) e as mesmas regras de financiamento.

A prática comum das lojas físicas de tratamento personalizado dos clientes habituais pelos vendedores não é estendida ao comércio eletrônico tal como, infelizmente, tem sido a regra do e-commerce.

Considerações finais

Mercados altamente concorrenciais exigem rígido controle de custo, visto que é o mercado quem estabelece o preço. Os lucros são “normais”, o que significa crescimento lento e baseado em competências pessoais e muita experiência de mercado dos produtores. Quem nunca comeu melado quando come se lambuza.

Para que um lojista seja capaz de praticar preços superiores aos de mercado, é necessário que seus produtos sejam diferenciados (marca), o que somente pode ser conseguido por meio da elevada despesa com propagandas contínuas bem sucedidas (basta ver o que ganha a Gisele Bundchen), além dos indispensáveis atributos que qualifiquem seus produtos. É muito difícil sair do lugar comum.

A extensão da abrangência de mercado vem sendo a mais importante estratégia de aumento do volume de venda dos lojistas e tem sido realizada através da expansão da rede de lojas, da distribuição através de revendedores, da constituição de franquias etc.

Em tese, o comércio eletrônico destrói as barreiras que comunicavam poder de monopólio local à loja física assentado nos elevados custos de transporte, com sua onipresença abrangendo todo o mercado nacional a partir de uma única loja. Como caso limite, contando com a liberdade de comércio, da China, a AliExpress atinge o mercado internacional!

Embora destrua as barreiras territoriais, o comércio eletrônico tem limitações que o estão impedindo de tirar proveito integral de seu potencial: a banda larga ainda não está totalmente disseminada; o acesso exige um bem ainda pouco acessível à maioria da população, e seus custos, sobretudo para itens de menor valor unitário (como vestuário), ainda são elevados (não é à toa que a AliExpress tem preços e fretes baixíssimos).

Não há sentido em ter mais de um aspirador de pó, porém não é incomum uma consumidora ter 20 pares de sapato. O vestuário, pelo seu consumo contínuo e subutilização e descarte de suas peças (com 20 pares de sapato, o uso médio de cada um deles é de 5% do potencial), é muito atraente para o e-commerce.

As grandes lojas de e-commerce, ao mesmo tempo em que anseiam vender vestuário, têm muitas dificuldades em trabalhar com ele por três motivos básicos: primeiro, o comprador tem que ser altamente especializado – não menos do que um lojista muito experiente -, portanto, muito raro de se encontrar – erro na compra é letal; segundo, a logística interna do vestuário é complexa devido às suas características: alta variedade (modelos, cores e tamanhos); impossibilidade de reconhecimento individualizado de cada uma das peças por código EAN; dificuldade de identificação visual das peças; destaque apenas dos modelos na nota fiscal, dificultando o confronto da nota fiscal com as peças recebidas; terceiro, os fornecedores ainda não são tão disciplinados nas entregas.

O vestuário, ao que tudo indica, parece fadado a ser vendido por lojas virtuais especializadas em parceria com os marketplaces, tal como deve ocorrer com categorias de cauda longa.