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Uber: serviços, presa fácil das plataformas tecnológicas baseada na internet (Parte 1)

Por: Fernando Di Giorgi

é ex-sócio fundador da Uniconsut Sistemas, empresa especializada em back-office para grandes lojas de e-commerce. Fomado em Matemática pela USP, pós-graduado em Administração pela FGV e em Análise Econômica pela FIPE, mestre em Economia pela PUC-SP.

Todos sabem dos efeitos do desenvolvimento tecnológico na indústria: aumento da produtividade, redução de postos de trabalho e diversificação de mercadorias. O motor deste processo tem sido a disputa concorrencial, portanto, irrefreável.

Este processo tem sido contínuo e diretamente dependente de da automação de máquinas, cujas instalações exigem obras civis e mão de obra qualificada. Justamente esta dependência material tem ditado o ritmo da automação na produção de bens.

A partir de 1995, novas possibilidades técnicas foram abertas pelo uso comercial da internet, possibilitando a produção de sistemas computacionais mais flexíveis e capazes de coordenar fluxos de trabalho intensivos em decisão (regras embutidas nos sistemas substituindo a intervenção humana), garantindo a efetividade do comando gerencial e, ao mesmo tempo, mantendo rígida padronização operacional.

Com isso, os sistemas de informação penetraram no setor de serviços até então protegido pela despadronização do trabalho e dificuldades de coordenação. Porém, o ritmo das mudanças que eles têm ocasionado tem sido surpreendentemente alto e com efeitos ainda mais devastadores em termos de redução postos de trabalho do que na indústria.

Seguem seis dos mais importantes fatores explicativos. O primeiro é devido à própria natureza da atividade de serviço. O serviço é imaterial, sua substância básica a informação, justamente o insumo que está sendo barateado pelos processos computacionais.

Em segundo lugar, os sistemas não precisam de instalações especiais para serem desenvolvidos nem para serem instalados. Bastam estações desktops ou celulares conectados à internet, dispensando caros servidores – o processamento e a armazenagem dos dados são realizados “em nuvem”.

Em terceiro lugar, os sistemas passaram mais flexíveis e adaptativos, com “regras de negócio” embutidas nos programas, substituindo as intervenções humanas. Isso possibilitou a penetração dos sistemas em atividades de “decisão intensiva”, aquelas pouco normatizadas e muito dependentes dos operadores. Quatro exemplos ilustram este fato: os estoquistas dos grandes depósitos das redes de lojas apenas cumprem as ordens de serviços emanadas pelo sistema de gerenciamento, parte do trabalho do atendimento pós-venda está sendo feita intermináveis menus pré-gravados dispensando a intervenção dos atendentes, a automação da análise de crédito para compras online (autenticação do cartão) e as operações bancárias realizadas por meio da internet.

Em quarto lugar, a intensificação do monitoramento do trabalho, refinando o controle do desempenho operacional de cada trabalhador, possibilitando a diferenciação salarial (bônus) e estimulando a competição interna, a extensão da jornada de trabalho e a redução do piso salarial.

Em quinto lugar, as empresas de serviços têm a convicção da inevitabilidade do investimento em tecnologia para se manterem competitivas. Porém, como elas, em geral, não têm perfil para a inovação tecnológica (especializam-se no que fazem), elas recorrem à aquisição de startups bem-sucedidas, estimulando a frenética competição entre jovens desenvolvedores pela possibilidade de riqueza imediata.

Em sexto lugar, os ativos necessários ao desenvolvimento de sistemas são facilmente acessíveis, basta um notebook conectado à internet e inventividade. Os serviços mais vulneráveis frente ao inexorável avanço tecnológico são aqueles em que a informação é mais intensiva e cuja produtividade é muito dependente da coordenação do trabalho.

2. Histórico da evolução do ganho de produtividade e perda da autonomia

2.1. O “ponto” como restrição de mercado

O aumento da produtividade dos táxis com o uso da informação tem seu início quando da instalação do telefone nos pontos de táxi. Neste modelo, a oferta dos serviços, regulada por leis municipais e federais, para o atendimento da demanda era composta apenas pelos taxistas do ponto e que nele estivessem no momento da sua comunicação. O mercado dos taxistas do ponto era restrito às redondezas do próprio ponto, salvo aleatoriedade do serviço prestado em percurso.

2.2. A central telefônica como referência para associados

Posteriormente, a oferta de serviço foi ampliada e a demanda parcialmente centralizada por meio da formação de agremiações de taxistas com o objetivo de comunicar as demandas recebidas aos seus componentes conectados por rádio. A tecnologia usada forçava que toda demanda fosse comunicada simultaneamente a toda frota, sendo satisfeita pelo taxista que primeiro respondesse, desse modo, a escolha ainda estava integralmente nas mãos dos taxistas.

Com a identificação do taxista, o usuário era informado sobre o tempo estimado para a chegada do taxista e a também recebia informações sobre o veículo a fim de identificá-lo. Com isso, o mercado foi ampliado, o ponto passou a ser a central receptora das demandas e a oferta deixou de ser o grupo de taxistas associados ao ponto para ser o conjunto de taxistas associados à agremiação.

Neste modelo, começa a entrar em cena a intermediação comercial (a central de comunicação), porém, a realização do serviço e o seu pagamento continuava descentralizada: o usuário pagava diretamente ao taxista em dinheiro e, excepcionalmente, por cartão de crédito a depender da iniciativa do taxista em arcar com o custo de uma maquineta.

2.3. A gradual perda da autonomia (pagamento)

Uma variante do modelo, visava direcionar parte da demanda a partir de contratos empresas-frota de taxistas, pelo qual as empresas gozariam de um desconto em troca da fidelidade. Nesta variante, ocorre uma importante mudança: o pagamento do serviço prestado deixa de ser feito diretamente ao taxista e passa a ser centralizada (voucher) e recebido a prazo, criando-se inclusive um mercado de recebíveis entre os próprios componentes da frota.

2.4. Uma plataforma a dominar o mercado ainda regulado

As possibilidades técnicas foram muito ampliadas com o advento do celular como meio de comunicação da demanda, pela centralização prévia de informações cadastrais de usuários e taxistas, pela possibilidade de embutir programas nos celulares (apps) e pelo uso da internet. O uso desta tecnologia permitiu controlar a comunicação entre as partes envolvidas no serviço.

Conhecendo, em tempo real, a localização de toda oferta e demanda de serviço, o sistema central passou a mediar firmemente toda a realização do serviço, relacionando usuários com os associados da agência sem qualquer intervenção humana.

A circunscrição do mercado passa a ser o município, aos taxistas não resta alternativa senão aderir ao sistema e aos usuários, a adesão é quase compulsória no afã de reduzir o tempo de espera.

2.5. O divórcio entre o controle e a propriedade

A separação entre o controle e a propriedade é bastante antiga, sociedades anônimas, por exemplo, onde o relacionamento entre os acionistas (proprietários) e a diretoria executiva (controle) é normatizado por lei e mediados por um conselho de administração.

No caso em foco, o controle integral do serviço passou a ser feito por uma plataforma de software privada com fins lucrativos, juridicamente independente dos associados que são proprietários dos veículos. Quem controla as operações em sua totalidade – a agência – tornou-se independente de quem detém o capital (os motoristas associados à plataforma).

O modelo torna-se ainda mais radical pela natureza da empresa controladora: seu capital é imaterial, uma peça de software cujo funcionamento não requer o uso da força de trabalho própria, exceto o controle operacional executado por especialistas com custo pouco relevante. Este capital se reproduz colocando em movimento o capital e força de trabalho dos seus associados.

Este divórcio, que está na gênese do empreendimento, sendo fonte geradora de antagonismo de interesses.

2.6. O aumento da oferta como necessidade da plataforma

O modelo mais recente, com a denominação de Uber, empresa com sede nos EUA, em franca expansão para outros países, inova em propor a ampliação da oferta de serviço valendo-se do conceito de “economia compartilhada”. Ela não mais seria composta somente por taxistas, além desses, poderiam ser agregados motoristas profissionais proprietários de determinados tipos de automóveis.

Com esta nova modalidade de oferta, abre-se a oportunidade ainda maior de geração de receita a partir do capital de terceiros. Um problema a ser superado por essa nova modalidade, diz respeito à sua regulamentação, já que introduz uma competição com a categoria dos taxistas submetidos a uma legislação específica.

Como mostrado anteriormente, os modelos foram se modificando ao ritmo do desenvolvimento tecnológico com o objetivo de aumentar a produtividade dos taxistas (relação tempo de uso cobrado sobre tempo trabalhado) e, por consequência, reduzir o tempo de espera do usuário.

Gradualmente, o relacionamento entre tomadores e prestadores do serviço foi se tornando indireto, chegando-se ao limite de ser independente deles, sendo realizado por um sistema integrado envolvendo várias plataformas (celulares, web, servidores de aplicação etc.) e tecnologias preexistentes (sistema de pagamentos, georreferenciamento etc.).

A inovação ocorrida está associada a uma combinação de tecnologias para uma finalidade que já vinha sendo progressivamente aperfeiçoada. O aumento da renda do prestador de serviço continua a ser diretamente associado ao alongamento de sua jornada de trabalho visando o aproveitamento máximo de seu capital (no caso automóvel). No entanto, sob o modelo em foco, o prestador de serviço passa se subordinar a um sistema de informação fora de seu controle, que domina a demanda, seleciona a oferta, formula as regras de precificação e centraliza a receita, devolvendo-a após apropriar de um percentual a título de “licença de uso”.

Tratando-se de um software e sem grandes barreiras tecnológicas à entrada de concorrentes, portanto, sem há limites físicos para expansão de sua utilização. Na ausência de barreiras de entrada, as armas de combate entre as agências concorrentes será a diferenciação do serviço prestado (o tempo de espera e qualidade do atendimento ao cliente) e o preço da tarifa. Ambos os fatores somente poderão ser atingidos pela expansão da frota para que a massa de lucro permita o melhor e mais amplo selecionamento da oferta.

Este processo, inevitavelmente, conduz à restrição da quantidade de agência no mercado, visto que o aumento da oferta (associados) é, proporcionalmente superior ao aumento da demanda. Em outros termos, o mercado de agências, por natureza, será fortemente oligopolizado.

Leia na segunda parte deste artigo:

3. O instrumental técnico de controle do processo de trabalho (workflow)

4. Visão estrutural do “modelo de negócio” das agências

5. Vantagens e desvantagens das partes envolvidas