Logo E-Commerce Brasil

Transformação digital sem filtros: desafios das grandes corporações em se digitalizarem

Por: Marcelo Linhares

É CEO e fundador da Onfly, travel tech focada em otimizar a gestão e a redução de custos com viagens corporativas. É também membro do conselho da Selia, entusiasta de tecnologia, startups, digital e varejo e já foi executivo responsável por omnichannel de uma grande rede de varejo de moda.

Se você quiser se destacar em uma roda de amigos, fale que está trabalhando atualmente com “Transformação Digital”. Transformação digital é a nova panaceia do mundo corporativo e se você não ficou escondido em uma caverna nos últimos 10 anos, presumo que já saiba disto.

Uma recente pesquisa da KPMG na Austrália, mostrou que a transformação digital é prioridade na agenda dos principais CEOs das empresas australianas. Se repetir a mesma pesquisa aqui, nos Estados Unidos, na Europa, na África e na república de Miamar, certamente o resultado vai ser o mesmo.

Desnecessário dizer que a gente já sabe que transformação digital não é simplesmente colocar um e-commerce no ar. Convenhamos, depois do Wix, Nuvemshop e da Loja Integrada, é possível fazer isto em alguns minutos, e sua empresa vai continuar sendo analógica da mesma forma, não se engane.

Isto posto, não concordo completamente com a afirmação de que a Covid-19 “acelerou a transformação digital” nas empresas. Na verdade, ela acelerou a criação de canais digitais para trazer receita para dentro, quase um instinto de sobrevivência, e todo ecossistema de soluções para e-commerce, tais como plataformas como Shopify (que já vale 41X sua receita em bolsa) e Vtex agradecem.

Existe um fosso enorme entre transformação digital e e-commerce. Em meu último trabalho em uma marca de calçados, tive um grande êxito em integrar canais e entender a jornada do consumidor omnichannel, mas falhei de forma retumbante na transformação digital da companhia, admito.

Enquanto a empresa como um todo não se digitaliza, o e-commerce é apenas uma ilha, um mero canal digital, no meio de tanta ineficiência “offline”.

Transformação digital também não é colocar um ERP para funcionar. O mercado de ERPs existe desde 1970, inicialmente exclusivo para algumas poucas grandes empresas, e agora completamente democratizado através de players como Bling, Conta Azul e Omie.

Leia também: Seu e-commerce vende tanto quanto poderia?

Hoje, com menos de R$ 200,00 por mês uma empresa consegue controlar fluxo de caixa, contas a pagar/receber, estoque, demonstrações contábeis fidedignas, e tudo que as grandes companhias historicamente controlaram deixando uma córnea e um rim no final do mês.

Bom, vejamos… 

Se colocar um e-commerce ou um ERP no ar não basta para se “transformar digitalmente”, afinal, que raios é isto?

É curioso, mas ter 36 anos e uma grande queda de cabelo me traz uma vantagem competitiva ao analisar transformação digital, fundamentalmente por quatro questões, em ordem cronológica:

Primeira: Já tive que pagar R$ 1,00, diversas vezes, por entregar fita VHS não rebobinada na locadora.

Segunda: Entre 1999 e 2001, vi crianças da minha idade criando websites, empilhando dinheiro, acreditando que estavam milionários, e em 2003 e 2004 vi estas mesmas pessoas pedirem mesada para os pais para poder pagar o provedor de internet.

Terceira:  fiz um curso de datilografia de 36 horas, e acreditei de verdade que aquele curso seria o suficiente para me dar algum futuro.

Quarta: Vi jovens com certificação Novel e Microsoft, vestidos de camisa polo Lacoste e calça Levis, se confundindo com Deus, ganhando rios de dinheiro.

Note o que pretendo explicar aqui.

Para conseguir ter lucidez em analisar transformação digital é preciso ter vivido um período analógico. Jovens com menos de 25 anos me perdoem, mas vocês só sabem o que é ser “digital”, a parte de “transformação” vocês não viveram. Quando nasceram o Brasil já era tetracampeão! Possuem meu respeito e minha admiração, sobretudo por saberem usar Tik-tok e Snapchat (minha sobrinha de 10 anos tentou me ensinar, sem êxito), mas nunca ouviram o Galvão gritar “é tetraaaaa… é tetraaaaaa…”.

É tipo uma pessoa que fumava e parou. Ela fez uma “transformação”, sabe exatamente o que era uma situação antes e uma situação depois, completamente livre do tabaco. Quem nunca foi viciado no fumo, ou que acendia um picado apenas no final de semana, nunca saberá discorrer sobre isto.

Com uma reduzida experiência de quase dezessete anos batendo cabeça em grandes empresas, consultoria de tecnologia da informação, startups e varejo, algumas sem muito brilhantismo, vou me arriscar nas próximas linhas deste artigo a tentar elucubrar o assunto da forma menos enviesada possível. 

Fique tranquilo, no final do texto não há nenhum call to action para “digitalizar” sua empresa, mas especulo que algumas coisas poderão ficar mais claras depois da leitura, confie em mim 😉

Entenda que, no final, tudo se resume a velocidade e consistência

Rodrigo Galindo, CEO da Cogna (ex-Kroton) certa vez em uma palestra resumiu bem os desafios de transformação digital de grandes corporações:

“Acontece que em uma startup, o CEO pega um review do consumidor, senta ao lado do desenvolvedor, melhora o produto em questões de horas ou dias… já em uma empresa grande até a informação chegar no CEO são semanas, para o CEO conseguir uma agenda com o C-Level são outras semanas, para o time de tecnologia que está cuidando de vários legados priorizar esta demanda são meses….”

Fica difícil competir: uma empresa adapta e melhora em questões de dias, enquanto outra demora meses. O resumo de transformação digital em uma linha seria:

“seja rápido, seu estúpido”.

E se estamos falando de velocidade, o caminho mais rápido para ligar dois pontos é sem dúvida através de bytes e não por átomos, portanto, tudo relacionado a big data, analytics, inteligência artificial, e quinhentas outras buzzwords que o pessoal insiste em inventar para parecer que são mais inteligentes, é sobre velocidade.

Sua empresa precisa de big data e analytics para tomar decisões mais rápidas, caso contrário, aquele BI que te entrega informação em D+7 dias daria conta do recado, acredite.

Agora vou me permitir abrir um parênteses, e falar sobre a importância de cloud computing em acelerar as coisas!

Ela foi responsável por dar vida a mais de 98% dos principais produtos digitais que a gente usa e ama e se você tem mais de 35 anos e trabalhava com tecnologia, talvez se lembre como era adquirir capacidade tecnológica há 20 anos:

  1.  – Cotar máquinas com IBM, DELL e HP;
  2. buscar por um data center para fazer co-location;
  3. contratar mão de obra para fazer a instalação e configuração de serviços.
  4.  esperar esta “mão de obra” instalar, configurar e migrar dados;

O ciclo deste processo inteiro não durava menos de 50 dias, e dependendo das circunstâncias, em 20 dias esta capacidade se esgotava e era necessário mais 50 dias para adicionar mais capacidade, e neste ínterim era erro 500 ou “no donuts for you” (esta é especialmente dedicada aos órfãos do Orkut) na tela dos usuários. 

Hoje, com cloud-computing, um pouco de juízo e alguns dólares, qualquer empresa tem uma capacidade infinita de disponibilidade computacional. Se antes gastava-se 50 dias, hoje uma empresa consegue em alguns minutos.

Esqueça isto de “dados é o novo petróleo”, e “AI é a nova eletricidade” , a verdadeira energia no mundo atual, que carrega milhões de produtos digitais, é definitivamente “cloud computing”.

E veja só a curiosidade!

Não foi Larry Elisson, Steve Jobs ou Bill Gates que criou o conceito de cloud computing e sim Jeff Bezos, fundador da Amazon, até então uma varejista.

Lembre-se disto: quando um tolo encher a boca e falar para você: “Tenho 30 anos de experiência de mercado, e garanto que isto é impossível”, Bezos tinha pouquíssima experiência no mercado de tecnologia, e palpito que depois da WWW brilhantemente criado por Tim Berners Lee, a maior revolução na área foi cloud computing.

Encerro o parênteses e seguimos.

Princípios “Lean” e “Ágil” para toda a empresa

Em 2011, um cara chamado Eric Reis sacou que existia um padrão entre as novas startups que cresciam e se davam bem e as que fracassaram e daí cunhou um termo que é uma mistura dos princípios de “lean manufactoring” e de startups: “Lean Startup”.

Lean Startup nada mais é que aplicar conceitos de “Lean”, como eliminação de desperdícios com atividades que não geram nenhum valor em de startups, que são modelos de negócios que nascem em um modelo de repleta incerteza.

Em 2012, vendo todo este conceito, fui extremamente ingênuo em fazer um TCC sobre Lean Startup (desconfio que fui um dos primeiros) na PUC Minas. Eu era tipo Giordano Bruno, tentando provar que a terra era redonda e um monte de gente olhando aquilo como heresia.

Teve um professor na minha banca com 25 anos de experiência, PMP certificado pelo PMI, que ficou bravo e disse que nunca tinha lido algo tão sem sentido, afinal, sem um plano de negócios sólido, era impossível ter êxito em algo relevante (detalhe: ele nunca tinha empreendido na vida).

Me lembro que em 2007 discutia na aula tentando explicar que metodologia ágil funcionava, pois nas disciplinas de engenharia e processos de software você passava 90% estudando modelos waterfall e 2% sobre modelo ágil (outros 8% a gente passava no bar da universidade mesmo), afinal, se aquilo não funcionava para grandes projetos, não poderíamos perder tempo.  

Quanta ingenuidade! Acreditar que cinco anos depois as mesmas pessoas aceitariam que princípios da metodologia ágil poderiam ser aplicados para negócios também… queima ele, Jesus!

Na monografia eu contei o caso da Starmedia, empresa que criou um plano de negócios de 300 páginas com estudo do mercado, estatísticas, projeções e estimativas de receitas e custos e após um exitoso IPO e um valor de mercado de U$ 3.8 bilhões foi a falência em apenas três anos, com todas as estimativas do plano de negócios se mostrando absolutamente equivocadas.

Mike Tyson uma vez falou algo instigante: “Todo mundo tem um plano até levar um soco na cara”.

Isto é igualmente válido para projetos dentro das empresas. Planos de negócios de projetos se mostram irrelevantes depois das primeiras interações com os clientes. Troque o soco do boxeador oponente por um feedback real e negativo do seu cliente sobre aquela ideia maravilhosa que seu time de PHDs do laboratório de inovação ficou 5 anos executando.

Eric Reis entendeu que os princípios de agilidade deveriam ser aplicado para startups também, só não percebeu, naquele momento, que o princípio poderia ser aplicado para todas as corporações, não só startups, afinal, com advento da internet e globalização, todas empresas estão em um ambiente de repleta incerteza (Vide Covid-19).

Veja só, empresas como Google, Apple e Microsoft são fábricas de experimentar produtos e serviços novos anualmente, em uma velocidade impressionante.

Alguns falham, outros dão muito certo, mas o importante é executar rápido e com consistência, o ciclo: “construir → medir → aprender”.

Empresas que quiserem se transformar digitalmente, precisarão colocar na corrente sanguínea princípios de lean startup, e abandonar velhos hábitos de criação e lançamento de projetos seguindo modelos waterfall, em que assumem premissas de futuro totalmente equivocadas.

Eu especulo que um dos maiores cases de transformação digital do Brasil, é o PagSeguro.

O UOL, entre 2005 (quando fez o IPO) e 2008, viu que sua receita de assinatura, proveniente do serviço de provedor, estava minguando. Estrategicamente (ou de forma empírica) resolveu diversificar sua receita em vários produtos e saiu lançando novidades a cada trimestre: 

  • Metade Ideal (para concorrer com o ParPerfeito);
  • UOL Shopping (para concorrer com Buscapé); 
  • UOL Mais (para concorrer com o Facebook, isto depois do mico do UOLK); 
  • EmpregoCerto (para concorrer com a Catho);
  • UOL HOST, (para concorrer com a Locaweb);
  • TodaOferta (para concorrer com o Mercado Livre) e também comprou um produtinho lá de Guarapari, chamado BrPay, para dar segurança nas transações do TodaOferta, que depois mudaram o nome para PagSeguro.

Avançamos 10 anos no tempo e…todos estes produtos fracassaram, ficando apenas o PagSeguro, hoje uma empresa de capital aberto que vale U$ 12 bilhões em Nova York, umas 25 vezes o que valia o UOL na época em que fechou o capital em 2011.

E ainda tem o UOL Diveo, que é uma empresa que se abrir capital, o valor de mercado passa tranquilamente de R$ 1 bilhão.

O UOL está se chicoteando por ter falhado com o TodaOferta, EmpregoCerto, MetadeIdeal e mais outra penca de produtos? Presumo que não. Descartaram o que não funcionava bem e aceleraram o que performava, simples assim.

Olha, vou dar mais uma dica: esqueça Kodak e Blockbuster, exemplo dado por 99% dos gurus de inovação, lembre-se do UOL, do Pagseguro, e infelizmente do Grupo Abril quando for se aprofundar em empresas que souberam se reinventar e empresas que fracassaram.

Lembre-se, os gurus de inovação pararam no tempo, estavam muito ocupados dando palestras falando sobre Netflix e Blockbuster e foram incapazes de ver os novos acontecimentos dos últimos 10 anos.

Tecnologia como “core-business”

Talvez eu revele um segredo aqui que pode deixar algumas pessoas impressionadas, mas quando uma empresa opta por estruturar squads na organização, copiando o modelo da Spotify, ela não faz isto com o propósito apenas de aparecer na Exame ou no Valor Econômico. Ela faz isto porque quando você coloca um programador, um designer, um nerd e um cara de compras juntos, este time é capaz de melhorar a área de compras, que historicamente é burocrática, em uma área mais ágil e eficiente.

Replique isto para área de tesouraria, contas a pagar, atendimento ao cliente, qualidade, produtos, suprimentos, viagens, comercial e suporte e você terá pessoas com visão de tecnologia imersos para resolver problemas da sua organização, que quase sempre são infinitos.

Note que o papel da tecnologia muda completamente neste momento. Antes eram pessoas que ficavam no CPD recebendo chamados e resolvendo problemas, as empresas mais “moderninhas” tinham áreas de tecnologia para entregar projetos, que findavam após a entrega.

Olha como éramos burros na nossa análise. O time de projeto era avaliado pelo cumprimento do prazo da entrega! Perceba a miopia…

Projeto ruim que ninguém usava entregue no prazo ganhava estrelinha e promoção do PM (project manager). Projeto que atrasava, mas que gerava realmente valor para as organizações, era questionado, e muitas vezes o PM era demitido.

Eram verdadeiros silos dentro das organizações, com uma visão míope sobre geração de valor.

Hoje a área de tecnologia não é mais só “reativa” e tampouco uma máquina de entregar projetos, a área de tecnologia é horizontal. Entregar projeto no prazo não basta, é preciso verificar as métricas e compartilhar resultados, aprendizados e contribuir continuamente em sua evolução.

Antes era: “O aplicativo está pronto, podem usar”.

Agora é: “A primeira versão está lançada, vamos acompanhar como vai ser a performance de aquisição dos usuários, os indicadores de engajamento, cadastros, receita, recorrência para cada indicador e vamos trabalhar arduamente para melhorá-los”.

Lembra do soco do Mike Tyson?

O time de tecnologia tem que sentir a dor do soco também, não dá para falar “entreguei, agora o problema não é mais meu”. 

“Caí de paraquedas” em um mercado altamente comoditizado, oem que 3 plataformas de tecnologia de 15 anos atrás, que parece que foram feitas para funcionar no Internet Explorer 5, transacionam quase 95% das reservas de viagens das 5 mil maiores empresas dos Brasil, através de mais de 5 mil agências de viagens.

Quando perguntei para alguns concorrentes, players que transacionam acima de R$ 300M/ano, o motivo de não desenvolverem sua própria plataforma, disseram que o custo não compensa, que fizeram diversas contas e não tinha “payback” no investimento. 

Aí o mercado virou, as empresas perceberam que a plataforma oferecida era uma commodity entre todas as agências e hoje um monte de gente fica brigando em cima de uma tarifa de serviço cada vez mais espremida, tentando empurrar desesperadamente para as empresas um discurso de “atendimento diferenciado”, como se alguém optasse por viajar de Gol, Azul e Latam pela qualidade do seu atendimento de backoffice (nota: todas as cias. aéreas possuem atendimento questionável, arrisque ligar para o 0800 delas e perceba).

Se a principal plataforma que a sua empresa entrega para o cliente é uma commodity, que outras 5 mil empresas podem oferecer, em uma concorrência com uma grande empresa, sua empresa fica como uma hiena acuada pelos leões e, acredite, vão te espremer até o último centavo.

Satya Nadella (vou falar mais sobre ele, mas guarde este nome) brilhantemente disse em 2015 que no futuro toda empresa seria de tecnologia. Passaram-se cinco anos e muitas empresas ainda não entenderam o que é isto.

Me perdoem os CFOs de terno e gravata, mas a culpa é essencialmente de vocês.

Todos os princípios de análise de investimento, baseado em TIR e VPL, viraram pó neste novo cenário de transformação digital. Se o Yahoo tivesse compreendido em 2005 que era uma empresa de tecnologia e não de mídia e contratasse bons programadores ao invés de homens de terno e gravata com gumex no cabelo para vender “banners” no portal, estaria com um valor de mercado hoje próximo do Google, de aproximadamente de U$ 1 trilhão, e não seria vendida por “apenas” U$ 4 bilhões em 2016.

Em resumo, é preciso explicar aos financistas e conselheiros da sua companhia que investimento em tecnologia garante o futuro e diferenciação da sua empresa, não dá para estimar “payback” nesta lógica.

Acho que não falei ainda, mas tenho um filho, Arthur, de 5 anos. O treinei, talvez, de forma exagerada, na base da compensação: se guardar os brinquedos pode ver televisão; se comer tudo pode chupar um pirulito; se dormir na cama todos os dias, sem atrapalhar papai e mamãe a noite, ganhará um kinder ovo no final de semana.

Bom, outro dia, na hora de estudos, em uma aula online…

“Papai, se eu fizer a aula certinho o que eu ganho depois?”

Daí eu respondi:

“Na verdade, se você não fizer a aula, você vai ficar sem ver televisão uma semana”.

Eu inverti a lógica, estava na hora de Arthur aprender algumas coisas e se não fosse dentro de casa, iria aprender da pior forma na rua.

Os MBAs treinaram os CFOs para ser igual Arthur. Se eu colocar R$ 5 milhões em uma nova planta, recebo R$ 15 milhões em fluxo de caixa livre nos próximos dez anos, então vamos investir… vou ter apenas R$ 4 milhões de fluxo de caixa livre, então estou fora.

Agora a situação é semelhante ao do jovenzinho na escola: se não estudar, você não faz nada, não tem televisão, não tem pirulito, muito menos videogame!

Entenda CFO, se você não investir em tecnologia, daqui a dez anos sua empresa desaparece, ok?

Quando o Google decidiu investir no Gmail em meados de 2003/2004, existiam algumas dezenas de soluções de ‘mercado’ que poderia ser facilmente compradas, e certamente sairia mais barato que o custo de P&D do caro time de engenharia da empresa (que ficam sexta-feira se divertindo em projetos pessoais), afinal, existiam na época pelo menos algumas centenas de serviços de e-mail, comoditizados, e a única diferença era o tamanho de espaço na sua caixa de entrada.

16 anos depois, o Gmail mudou completamente o jogo da briga de e-mails. Eu palpito que hoje 90% esteja concentrado no Google e na Microsoft/Yahoo.

No final das contas, comprar ou alugar uma tecnologia na maioria das vezes é mais vantajoso do ponto de vista financeiro e de segurança pessoal do executivo… você cumpre o budget, recebe o bônus no final do ano, vai para a Disney com a família e fica em paz…. mas pode custar o futuro da companhia. Em uma visão de longo prazo, ela não está se diferenciando, é mais uma solução comoditizada disponibilizada para os clientes.

Veja o mercado de e-commerce. Se todo mundo vende produto multi-marca, aluga uma plataforma de terceiro, aluga um ERP de terceiro, compra mídia no Google e no Facebook, despacha pelos Correios, como ela vai se diferenciar no meio de outros 930 mil sites de comércio eletrônico no Brasil?

Na antiga empresa em que trabalhei tivemos uma certa vantagem competitiva ao colocar integração de estoque da loja física no onlin, lá em 2014, por ter as plataformas e o sistema de estoque feitos dentro de casa.

Qualquer “especialista” diria que era uma loucura fazer isto, que era melhor terceirizar, mas esta tecnologia fez com que a empresa saísse de um GMV de R$ 9 mil por mês em fevereiro de 2014 para R$ 1,3 milhões/mês em 2019 no canal online, sendo que todas as vendas aconteciam do estoque do franqueado (tem algumas empresas tentando fazer isto há cinco anos através de sistema de terceiros, sem sucesso).

Observe, não estou falando que sua empresa deve abandonar o contrato com o ERP atual e começar criar um do zero. Nenhum consumidor opta por uma marca por causa do ERP que ela possui, mas dependendo do seu modelo de negócio, criar uma interface de venda mobile que seja integrada com seu ERP pode fazer uma baita diferença no meio de tanta experiência péssima no ponto de venda.

Automação e produtividade

Empresas digitais em sua maioria são taradas por produtividade e dão a mínima se o colaborador chega às 8h e sai às 17h. Olham apenas para o que eles produzem no final do mês, normalmente através de métricas bem claras.

Isto explica, por exemplo, porque o indicador de receita por funcionário de empresas como Apple, Google e Facebook estão entre as maiores do mundo.

Boa parte das organizações tradicionais se auto-enganam. De manhã duas pessoas ficam cavando buracos e na parte da tarde outras duas pessoas tapam os mesmos buracos, assim, ao final do dia, a organização possui quatro pessoas completamente exaustas, cansadas e que não produzem absolutamente nada.

Tive a oportunidade de trabalhar em uma empresa com este cenário. Me lembro que um hábito comum dos colaboradores da área fiscal e financeira era gotejar rivotril na água para se sentirem mais calmos, afinal, acreditavam que trabalhavam muito mais que todo mundo e se orgulhavam disto.

Em uma reunião, vi duas pessoas reclamando que estavam exaustas e que precisavam contratar mais gente, pois o aumento do volume de vendas faziam com que ficassem o dia todo emitindo notas fiscais na prefeitura. Não era diretamente minha área, mas me incomodava trabalhar em uma empresa em que pessoas entravam no site da prefeitura para emitir notas, quando já existia diversos algoritmos capazes de fazer isto, com muito mais eficiência, em menor tempo, e sem consumo de Rivotril.

Logo, dei a sugestão de tentar colocar um sistema para fazer isto e, ingenuamente, acreditei que seria bem visto:

“Impossível”, falaram rapidamente…

“Só a gente que pode emitir notas na prefeitura, imagina, e se der algo errado?”

Custei a perceber, mas no fundo, elas gostavam das gotas do Rivotril, de se sentirem extremamente ocupadas e do “poder” que tinham, pois tinham a ilusão que eram as únicas na empresa capazes de emitir as notas fiscais.

A contragosto recebi o “OK” para poder pesquisar uma solução que automatizasse as emissões, pagamos R$ 200,00 por um trecho de código que ligava nos arcaicos webservice da prefeitura, criamos um script que conectava com a parte de pedidos, colocamos no Cron para rodar de hora em hora, e voilà: centenas de notas fiscais geradas na prefeitura automaticamente, sem ninguém colocar a mão.

Sem rivotril, sem resmungos, e sem erros, afinal, computador não se distrai em grupos de whatsapp ou fica jogando conversa fora no café.

E para você que acredita que as duas pessoas foram mandadas embora, colocando os programadores como grandes maníacos destruidores de empregos… não… elas continuaram e tiveram tempo para poder fazer outras coisas igualmente importantes.

Em resumo, empresas com maior maturidade digital, que possuem competências de tecnologia, conseguem gerar mais eficiência, aumentar os indicadores de produtividade de toda organização e consequentemente ter mais escala.

Veja o exemplo da Magazine Luiza, com as palavras de André Fatala, o nerd que foi um dos protagonistas da transformação digital do grupo:

“Temos uma cultura orientada a dados e automação, então tudo tem que gerar métricas para a tomada de decisões, e isso está enraizado. O negócio está em crescimento exponencial. Se a gente não automatizar processos, não suportamos a escala”

Recrutamento e seleção ágil 

Olha, tem uma história muito rápida do meu passado que merece ser compartilhada. Em 2010 estava cansado da Faria Lima, não era cool e tampouco tinha coletinhos como hoje 😉

Eu trabalhava no UOL, ali na Faria Lima com Rebouças, empresa supimpa, colegas igualmente supimpas, mas queria voltar para Belo Horizonte, São Paulo não tinha botecos de rua com torresmo e cachaça e isso me chateava um bocado. Vi uma vaga em uma empresa grande de varejo em BH que eu achava que me encaixaria, mandei o CV e dois dias depois recebo a ligação:

“Marcelo, vimos seu CV, mas acho que não dá pra você participar do processo seletivo, pois acontece em três dias durante a semana na parte da tarde”. Aquilo me soou estranho, processo seletivo de três dias no horário da tarde, no meio da semana, oras, quem conseguiria participar? Fui descartado por estar trabalhando, paciência.

Lá vem o Linhares falar da Magazine Luiza de novo…

Bom, dois anos se passaram, eu ainda estava em São Paulo e um amigo meu que estava na Magazine Luiza falou que a empresa estava abrindo várias vagas para o time de digital. Me intyeressei em saber para qual vaga e ele falou: “Vem cá, vamos bater um papo, e a gente pensa em uma vaga para você, você vai falar com o diretor da área”.

Eu lembrei de Jim Collins e das empresas vencedoras: primeiro coloque as pessoas boas pra dentro, depois decida o que fazer.

No dia seguinte recebo a ligação:

“Olá Marcelo, tudo bem? Sou secretária aqui do Magazine Luiza, queria marcar um horário com você para conversar com o Diretor X, quando você pode? ” (Diretor “X” foi uma forma bizarra de esconder o nome da pessoa, ok?)

Peraê…

Não tinha uma vaga específica, e o horário eu que escolheria?

Decerto que sempre me considerei um cara humilde, mas não fosse esta característica, provavelmente estaria me achando, mas veja bem, não era uma posição de diretor, gerente, tampouco coordenador, era uma vaga para analista desenvolvedor/product owner/scrum master, sei lá o quê. Marquei às 7h da manhã e foi um longo excelente papo.

Veja que incrível, não precisei contar nenhuma historinha para empresa que eu trabalhava, a Magazine Luiza se adaptou ao meu horário, uma empresa que já tinha centenas de lojas, capital aberto e já era grande.

10 anos se passaram, na época, a Magazine Luiza e aquela varejista de BH possuíam quase o mesmo tamanho e valor de mercado. Hoje a Magalu tem valor de mercado de R$ 150 bilhões e esta varejista mineira, anacrônica em seu “modus operandi” de recrutamento e seleção, infelizmente entrou em recuperação judicial.

Storytelling e Inspiração

A habilidade de contar boas histórias através de lideranças inspiradoras é uma característica comum entre empresas digitais. Logo, se sua empresa quer se transformar digitalmente, vai ter que aprender a inspirar colaboradores e consumidores.

Veja só…

Se voltarmos 20 anos, a Microsoft era conhecida como uma empresa monopolista, que enxergava o Linux como um câncer e notoriamente vista como uma “empresa do mal”. Quem estava a frente da empresa nesta época? Um ogro estúpido chamado Steve Ballmer, que de dia era CEO da Microsoft e a noite assustava crianças, dê uma olhada.

Trabalhar na Microsoft sob a batuta de Steve Ballmer era flertar com o diabo. Em 2014 assumiu um indiano fofo, Satya Nadella, que em sua gestão carimbou novamente o selo de empresa “inovadora”, investiu forte em serviços na nuvem (vide Azure), fez as pazes com o Linux, comprou o Linkedin e atualmente a empresa conta com mais de U$ 1.5 trilhões em valor de mercado. Você acha que a história de turn around da IBM é incrível? Estude a Microsoft sob a gestão de Satya Nadela e verá que a história da IBM é brincadeira de criança (mas antes, por favor, estude a história do PagSeguro).

Mas não precisamos ir tão longe,  já que aqui no Brasil temos diversos outros exemplos. Novamente Luiza Trajano da Magalu. Até caindo com a tocha olímpica a empresa consegue ser “fofa” e inspirar pessoas, afinal, “cair faz parte”, quem nunca, né?

Você prefere colocar seu dinheiro no Itaú, uma empresa que você nem sabe quem é o presidente, ou na XP, do Guilherme Benchimol, que enfrentou “na raça” o mercado financeiro tradicional e os bancões?

E tem mais uma pancada de outros exemplos de marcas da nova economia que sabem contar histórias: Reserva, Sambatech, Arezzo, Nubank, ZeeDog, etc..

Sua empresa precisa contar uma boa história, ter líderes inspiradores, que naturalmente virão mais talentos e mais consumidores. É uma equação ingênua, mas funciona: pessoas boas querem trabalhar com líderes que elas se inspiram; consumidores querem consumir produtos de marcas que as inspiram, simples assim.

Diretoria Executiva e Conselho de Administração renovados

Pense o seguinte: você quer emagrecer, possui hábitos de alimentação históricos bem ruins, sempre ingeriu muita gordura e açúcar e o mais próximo de uma atividade física que você faz é o uso dos dedos ao pilotar o controle da televisão. Você decide que após as últimas seis tentativas frustradas, vai finalmente perder peso.

Se você continuar andando com todos os seus amigos que almoçam no Mc’Donalds e jantam na Pizza Hut, tenha certeza que sua missão irá falhar. É preciso se cercar de pessoas que compartilham e admiram os seus novos hábitos.

Com Conselho de administração e diretoria executiva é a mesma coisa…

Se a empresa quer se transformar digitalmente, tem que se cercar de pessoas que acreditam e respiram esta mudança.

O perfil dos conselheiros de 95% das empresas do Brasil é muito parecido, em geral financistas acima de 50 anos,  na grande maioria homens, que se assustam ao ver uma pessoa de piercing e que não fazem ideia do que é Snapchat ou Tik Tok, tampouco se esforçam em saber. 

Acredite, não serão estas pessoas que irão contribuir para a mudança da organização.

Veja duas empresas que fizeram muito bem à transformação digital: Cogna e Magazine Luiza.

Um dos conselheiros da Cogna é Thiago Piau, de apenas 30 anos, CEO da Stone e um dos fundadores da Pagtaxi, que a propósito, também faz parte do comitê executivo de inovação da companhia.

A Magazine Luiza foi mais longe ainda. Sua diretoria é composta por vários profissionais de tecnologia e no conselho tem a participação do Silvio Meira, uma das mentes mais brilhantes quando o assunto é inovação tecnológica.

Há 15 anos era inimaginável colocar uma pessoa de 30 anos no conselho, a não ser que ela fosse da família do dono.

E profissionais como Silvio Meira, que não faz parte da panelinha do mercado financeiro, chegavam no máximo a uma posição de gerente de tecnologia dentro de uma empresa de varejo.

 Conclusão

Poderia escrever mais sobre transformação digital, como a forma de fazer marketing mudou, como a forma de educar e treinar colaboradores mudou e finalmente como empresas com maior maturidade digital são mais valorizadas pelos investidores, vide recente IPO do Grupo Soma e a própria Magazine Luiza, que já vale mais de R$ 150 bilhões na B3.

Mas vou encerrar por aqui, espero realmente ter sido didático o suficiente e útil com minhas palavras, e que este texto consiga te ajudar na longa jornada de transformação digital do seu negócio.