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Lições das trincheiras: a segunda página de uma operação omnichannel que ninguém te conta

Por: Marcelo Linhares

É CEO e fundador da Onfly, travel tech focada em otimizar a gestão e a redução de custos com viagens corporativas. É também membro do conselho da Selia, entusiasta de tecnologia, startups, digital e varejo e já foi executivo responsável por omnichannel de uma grande rede de varejo de moda.

Era meados de 20014. Eu tinha lido uma matéria na Exame falando sobre uma uma grande rede de calçados que já estava fazendo “omnichannel”, trabalhando com o conceito de prateleira infinita dentro das lojas. Se o cliente não encontrasse o produto na loja física, ele poderia comprar online em um quiosque dentro da loja.

Para a época era algo bem inovador. Eu estava fazendo muito benchmark com players lá de fora e aqui no Brasil — então peguei o avião e fui para São Paulo conhecer a loja e testar a “experiência”.

Chegando na loja, questionei a vendedora que queria ver mais opções de sapatos, que eu tinha lido que poderia olhar na internet, pois tinha mais opções.

A vendedora, então, me levou para os fundos da loja, abriu o site da empresa em um computador velho e falou: “É só comprar aqui”. Eu simplesmente não acreditei…

Quando tentei perguntar, a vendedora já tinha saído, e eu estava sozinho na frente de um computador. Fui atrás dela e perguntei como eu pagaria, ao que ela respondeu: “é só digitar os dados do cartão igual à uma compra normal”. Então, perguntei se poderia pagar na loja, e ela disse que não. Perguntei então se eu poderia colocar algum código dela para ela ser comissionada, e novamente falou que não. Fui mais insistente, e perguntei se poderia pagar com o dinheiro pra ela, pois não tinha cartão de crédito. Ela falou que, no máximo, poderia imprimir o boleto, mas que eu deveria ia na agência pagar.

Resumindo, foi uma das experiências mais pobres que tive. Se aquilo era “omnichannel” como tinha sido estampado nos holofotes de uma das revistas de negócios de maior reputação do país, estávamos realmente perdidos.

Aprendizados do passado

Primeira lição aprendida: em 2014 ninguém sabia o que era omnichannel. A verdade é que ninguém fazia omnichannel, mas todo mundo falava que fazia, pois era o buzzword do momento.

Tem uma frase atribuída ao professor Dan Ariely, sobre “big data”, e ela é facilmente adaptada para o contexto de omnichannel em 2014. Segundo o professor, “big data” se assemelha a sexo na adolescência.

“Todos falam sobre o assunto, ninguém sabe ao certo como funciona, todos pensam que os outros estão fazendo e então todos dizem que também estão fazendo”.

Já refleti como é possível melhorar a performance das lojas físicas abrindo um e-commerce, e a razão das operações omnichannel serem mais lucrativas, pois capturam muito mais sinergias entre as operações, gerando otimização de custos.

Mas a cada ano que passa surgem coisas novas, tecnologias que possibilitam acelerar ainda mais a integração entre os canais on e off.

Ações do omnichannel

Christopher Neiverth recentemente fez um levantamento sobre ações possíveis de “omnichannel”. Muitas, aliás, impensáveis há 5 anos. Veja a lista:

  • Ship from store;
  • Pickup store;
  • Compra online e troca em qualquer lugar;
  • Avise quando chegar em todos os canais;
  • Reserva online, pagamento na loja;
  • Compra na loja, troca online;
  • Pagamento por app, sem fila;
  • Ajuda por chat dentro da loja;
  • Comissionamento do vendedor pela venda online;
  • Totem físico / Prateleira infinita;
  • Venda online e receba em casa;
  • Pagamento unificado;
  • Carrinho unificado físico e online;
  • Retire em locker;
  • Lista de desejo online e offline.

Para cada uma das linhas acima, seria possível escrever um artigo, discutindo boas práticas a mostrando cases tupiniquins e estrangeiros.

Cada vez mais entendo que “omnichannel” não é o fim, mas sim o meio. É uma busca quase que eterna de melhorar a experiência do cliente por meio de todos os ativos físicos e digitais. Definitivamente, colocar um computador dentro da loja com um site aberto não é ser “omnichannel”; tampouco entregar um WhatsApp pra vendedora da loja física ficar vendendo produtos do e-commerce.

O omnichannel como deve ser

Introdução feita, a proposta deste artigo é contar a “segunda página” de uma operação omnichannel. Ou melhor, de uma operação que busca constantemente capturar sinergias e criar uma experiência única para o cliente — e que ninguém lhe conta.

E ninguém conta porque não é bonito, não tem glamour, não gera buzz e não dá visibilidade alguma.

Respire fundo, pegue um café, e vamos lá!

Cultura, envolvimento e “get out of the building”

Se está tentando fazer omnichannel em uma operação tradicionalmente de loja física, acredite, é preciso engajar as pessoas. É preciso mudar o modo do “sempre fiz assim” — e não será por um simples aviso por e-mail que isto vai acontecer.

As pessoas precisam entender a importância desta nova jornada. Lembro que percorri 4 estados para conversar com as vendedoras e gerentes das lojas físicas para “vender” o projeto. Elas precisavam participar, engajar e fazer parte disto.

E como em toda conversa, você fala, mas também escuta, ensina, mas também aprende (deixa um canal aberto). Se você é gerente de e-commerce ou de digital e quer integrar os canais físicos, precisa entender como funciona o processo de vendas dentro da loja, o PDV, a entrada do produto, o rodízio entre as vendedoras, a expedição. Caso contrário vai virar piada entre os colaboradores e o projeto vai naufragar.

Presente de corpo e alma

Sabe aquela frase do Steve Blank para validar um negócio: “get out of the building” (saia do escritório, na tradução para nossa língua)? Então, você precisa literalmente sair do escritório, fechar seu notebook e cair para dentro das lojas e aprender.

Me recordo que dois anos depois, em uma mentoria com a Luiza Trajano, da Magazine Luiza, ela me contou que também fez este processo de peregrinação conversando com todos os gerentes e vendedores da Magalu. Na ocasião, ela reforçava sobre a importância do digital na experiência de compra dos clientes.

Aliás, ainda sobre a Magazine Luiza, de longe a empresa que melhor soube executar omnichannel no Brasil, lembro-me o CEO, em 2015, deixando claro a visão da empresa:

“Queremos nos tornar uma empresa digital com e-commerce e pontos físicos com calor humano”.

Me desculpe as empresas que estão fechando loja por causa da Covid-19, acreditando que as pessoas no “novo normal” não frequentarão mais lojas.

Mas não existe omnichannel sem experiência física, sem “calor humano”. Fred Trajano disse isto em 2015, e olhando pelo histórico de crescimento da Magalu, ele acerta mais do que erra.

Outra coisa importante: se os acionistas e o CEO da empresa não estiverem engajados a bancar todos os possíveis problemas que vão acontecer (e vão acontecer, acredite), a chance de o projeto naufragar é grande.

Entregar uma experiência omnichannel aos clientes deve ser uma responsabilidade do CEO até a faxineira da empresa.

Algumas pessoas vão tentar te boicotar, infelizmente

Existem muitas pessoas que são resistentes à mudança, se apegam a processos históricos e se negam a mudar. Se o negócio vai definitivamente entrar no online, toda a empresa precisa se adaptar. O financeiro precisa entender como funciona um reembolso e fraude, a logística precisa entender como funciona uma reversa.

Lembro que na primeira devolução que tivemos, teve um colaborador do financeiro que falou: “Este negócio de e-commerce não funciona. Fica dando trabalho pra gente ter que reembolsar o cliente. Nunca fizemos isto em mais de 10 anos de loja…”.

Sim, você vai ter “inimigos” dentro da sua própria empresa. Alguns (com muita paciência) você consegue evangelizar e mostrar a importância de se adaptar. Outros, infelizmente, você precisará desligar, pois não estão alinhados com o novo rumo da empresa — faz parte.

Me recordo em uma mentoria com o Sebastião Bonfim, fundador da Centauro, quando ele comentou da mudança realizada da loja de 100 metros para “megastores”. Na ocasião, vários colaboradores não aceitaram, e ele infelizmente teve que desligar pessoas que estava há anos na empresa. Afinal, se negavam a aceitar que agora a marca iria ter lojas maiores, e que os processos deveriam ser totalmente reinventados.

Tecnologia e sistema

Desconfie de executivos que prometem a bala de prata de tecnologia para sua empresa criar uma experiência omnichannel — isto não existe! Não tem nenhum sistema que você assina um cheque e ele se cai como uma luva na sua operação.

Vai ser preciso colocar uma lupa nos processos, adaptar plataformas, integrar sistemas… E muito provavelmente sua empresa vai ter que adquirir algumas competências de tecnologia para desenvolver alguns ativos digitais, que permita integrar vários sistemas satélites nesta jornada.

Não existe omnichannel sem integração de sistemas. Integrar APIs é uma competência que sua empresa vai ter que desenvolver.

Pense que os ERPs tradicionais não estão prontos. Boa parte dos PDVs também não estão prontos, tampouco algumas plataformas de e-commerce. Estamos falando de algo relativamente novo, que cresceu exponencialmente nos últimos 7 anos. Portanto, é bem natural que exista poucos sistemas preparados para esta nova jornada do consumidor.

Acredite no meu conselho: não negligencie a parte de tecnologia, tampouco reduza investimentos nesta rubrica. É ela que vai permitir que sua empresa definitivamente automatize e integre todos os processos.

Processos

No desafio de integrar vários canais, será absolutamente normal a criação de novos processos. Afinal, é tudo novo: o vendedor da loja física vai receber um produto para trocar do cliente comprado na loja online, ou um atendente do SAC precisará tirar dúvida sobre a loja física.

Criação de indicadores e melhore de forma contínua

Para cada processo, crie indicadores e aloque responsáveis para acompanhar e melhorá-los de forma contínua. Vou dar um exemplo de um indicador e sua importância:

SLA de faturamento das lojas – Tempo médio entre recebimento de pedido online, faturamento dos pedidos do e-commerce que eram delegados para a loja física. É o tempo que a loja tem entre receber um pedido, encontrá-lo na loja, bipá-lo, e gerar a nota fiscal, separando para a expedição.

Existiam lojas que faziam este processo em 10 minutos, assim como outras que demoravam 8 horas, 24 horas, e até 36 horas. Isto dependia muito do nível de prioridade que aquilo significava para o time da loja.

O SLA acordado deste indicador era de 2 horas. Lojas que estouravam o prazo estavam sobretudo prejudicando a experiência do cliente, pois ele provavelmente iria receber atrasado.

Monitoramos aproximadamente 15 indicadores para garantir que a jornada do cliente fosse bem sucedida. E, para cada indicador, uma meta e ações eventualmente necessárias para corrigir.

Relação ganha-ganha

Na minha opinião, um dos maiores desafios em uma operação omnichannel é estabelecer uma relação “ganha-ganha”. Vale lembrar: se a vendedora da loja física entender que parte ou totalidade das comissões que ela ganharia na loja física está indo para o site, é natural que ela tente boicotar o canal.

Eu costumo fazer uma comparação com o “taxista e o Uber”. Quando a Uber chegou no Brasil, os taxistas fizeram protestos, atacaram pedras, brigaram… Não que a atitude tenha sido nobre, mas lembrem-se: o “arroz e o feijão” que eles colocavam na mesa era proveniente do trabalho do Táxi que o modelo do Uber veio para acabar.

É, portanto, um instinto de “sobrevivência”. Eu vi várias iniciativas “omnichannel” naufragarem, inclusive algumas que tiveram certo holofote na imprensa. Isso porque as vendedoras da loja física não participavam financeiramente das vendas online com retire na loja e boicotavam.

Encaixar um modelo de remuneração que todos os agentes do processo ganhem, principalmente os que lidam diretamente com o cliente: vendedores, gerentes e atendentes de SAC. Isso é fundamental para o sucesso da operação.

No caso de franquias, se a marca está vendendo online, com loja própria, e não divide a receita com o franqueado — que investiu às vezes o dinheiro da sua vida no modelo, e agora está virando “showroom” para marca —, sem dúvida alguma o modelo não vai ser sustentável no longo prazo, pois só uma das partes está ganhando.

Não existe “omnichannel” sem uma relação equilibrada de “ganha-ganha” entre os colaboradores que participam da jornada do cliente.

Conclusão

Não existe fórmula mágica nesta jornada de construção de uma operação omnichannel. Olhando para o setor, o varejo é um dos mais difíceis, com alta competição e margens reduzidas. Por outro lado, o consumidor está cada vez mais exigente, buscando melhores experiências e menores preços, e bastante impaciente a falhas (basta dar uma olhada no ReclameAqui).

Difícil cravar uma conclusão sobre quem sobrevive neste jogo, mas continuo insistindo que sem uma presença digital forte, o varejista tende a ser irrelevante. Da mesma forma que acredito que sem uma presença física a marca perde “alma”, ou “calor humano”, como bem disse Fred Trajano.