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Dois pesos e duas medidas: distinções legislativas injustificadas entre comércio eletrônico e físico

Por: Ricardo Oliveira

é sócio do escritório COTS Advogados. Possui MBA em Gestão Estratégica de Negócios pela FIAP. Especialista em Direito aplicado à TI, pela FGV/Rio e Processo do Trabalho pela Universidade Mackenzie. Atua há quase 10 anos na área jurídica sempre com foco em empresas do comércio eletrônico e tecnologia da informação.

Que todas as pessoas são consumidoras é fato. Desde o presidente ao prefeito, do deputado ao vereador, do juiz ao oficial de justiça, todos consomem. Todos que contratam produtos e serviços como destinatários finais têm interesse na legislação consumerista, uma vez que em muitos momentos da vida sentem na pele a fragilidade da sua condição diante da oferta de um produto ou serviço. Impelidos pela necessidade de consumir, e carecedores do nível de conhecimento próprio dos fornecedores e fabricantes dos produtos, as dúvidas sempre aparecem: será que estou levando  gato por lebre? Devo ou não devo? Compro ou não compro? Vale ou não vale?

Não sem motivo, diante de tamanha insegurança, vem a lei para “salvar” os consumidores, como fez o próprio Código de Defesa do Consumidor, ao estabelecer as regras básicas para as relações de consumo e, por mais controvertido que seja, o CDC foi um avanço que beneficiou a todos, direta ou indiretamente.

Todavia, atualmente tem se criado certas distorções na produção legislativa que parecem ter eleito a Internet como o local mais perigoso do mundo para o consumidor, como ocorreu com a edição da Lei 18.805/2016, do estado do Paraná. Segundo a referida Lei, os sites de compra precisam colocar o histórico de preços do produto oferecido como promoção ou liquidação dos últimos seis meses quando o anunciam em promoção/liquidação. A ideia da Lei é absurda, e vamos descrever o porquê.

Inicialmente, por que fazer distinção entre o comércio físico e eletrônico a tal ponto? Ou alguém já se deparou com histórico de preços nas promoções das lojas tradicionais? De certa forma, quem quer adquirir uma TV, por exemplo, e opta pelo comércio tradicional, terá mais trabalho em fazer pesquisa de preço, já que teria que se dirigir fisicamente a todas as lojas que comercializam o produto pretendido, diferentemente da Internet, que, além de não exigir o deslocamento, oferece sites de pesquisa de preços com histórico e alertas, ou seja, o consumidor poderá ser avisado quando a TV que o interessa estiver com o preço mínimo desejado.

Os defensores da lei podem se opor dizendo que a intenção é inibir a propaganda enganosa, já que muitos sites “incham” os preços para depois colocar o valor “promocional”. Pois bem, devemos reconhecer que a prática é de fato comum, mas não justifica a distinção entre os dois tipos de comércio. Ao estabelecer a distinção, o legislador onera o setor eletrônico, beneficiando indiretamente o setor físico, impondo uma obrigação que, para ser cumprida, gerará grandes custos de adaptação e desenvolvimento tecnológico.

Uma nova oposição pode aparecer nesse ponto, a de que a norma protege o consumidor e por isso pouco importa quem ela beneficia indiretamente, contanto que o consumidor tenha mais essa regra a seu favor. Talvez a tal de “seletividade”, de que tanto se fala na área investigativa, esteja sendo aplicada na área econômica também, porque duas palavrinhas pequenas como “comércio físico”, no texto legal, seria o suficiente para abranger os dois tipos de comércio, concedendo de maneira muito mais ampla, dessa forma, a citada proteção que alguns veem na Lei.

Todavia, em se falando de proteção, será mesmo que a lei protege o consumidor contra a propaganda enganosa? Correndo o risco de parecer cínico, o que vemos atualmente é justamente a utilização do marketing e da propaganda para fazer toda a sorte de produtos (bons, ruins, ordinários, e às vezes até nocivos) serem consumidos, atrelando-os a sensações e sentimentos subjetivos. Quando abro um refrigerante, abro a felicidade, como diz a marca líder? Talvez se pudesse dizer que sim, naquele exato momento quando o líquido é ingerido. Mas dizer que isso é a felicidade seria simplificar infinitamente o sentimento, o que não deixa de ser enganoso. Todavia, não se espera nenhuma produção legislativa que impeça o mercado de “confundir” produtos com profundos anseios do coração humano.

Ademais, o preço final é apenas um aspecto que deve ser analisado para se caracterizar uma promoção. Vamos dar um exemplo: imagine que o dólar tenha uma repentina alta, e o celular vendido o ano todo por R$ 1.000 agora vale R$ 2.000. A loja X resolve fazer uma promoção queimando os estoques pelo preço antigo sem antes tê-lo reajustado. Nesse caso, há de fato uma promoção, mas nos termos da lei isso poderá ser descaracterizado, tendo em vista que a lei paranaense considera como promoção apenas descontos superiores a 20%. O mesmo aconteceria na ocorrência de qualquer outro evento que impacta no custo do produto, como dissídio trabalhista, custo do frete, tributação, entre outros.

Por fim, não podemos esquecer que o consumidor do comércio eletrônico conta com 7 dias para se arrepender da compra ou contratação, sem a necessidade de justificação, o que é a segurança maior de que, encontrando preço mais baixo ou descobrindo a “farsa” da promoção, seja ressarcido dos valores que pagou.

Estamos falando da Lei 18.805/2016, porque ela foi um dos pontos altos da discriminação sofrida pelo comércio eletrônico, todavia não foi a primeira vez e não será a última que isso acontece, como podemos ver no caso do Projeto de Lei 986/2015, do Governo de São Paulo, que tinha a mesma intenção da lei paranaense (felizmente, o projeto foi vetado pelo governador), ou do próprio Marco Civil da Internet, que estabeleceu regras rígidas de segurança de dados pessoais, mas isso não foi reproduzido para o comércio físico. Ora, as redes que não possuem loja virtual não precisam zelar pelos dados de seus consumidores? Sim, mas somente o comércio eletrônico foi obrigado a tal pelo legislador.

O que não podemos perder de vista é que o ato legislativo não pode se dar sem motivação e adequação, ou seja, tem que haver um motivo plausível e que exija a ação estatal, mas que não ultrapasse o limite do razoável e adequado. Seria mais seguro que motoristas de carro usassem também capacetes? Claro que sim. Mas para obrigar todos os motoristas a utilizar capacetes seria necessário analisar os dados dos acidentes e mortes que eventualmente pudessem ser evitados. Da mesma forma, qual o número de consumidores que foram lesados por comércios eletrônicos paranaenses (isso porque a Lei 18.805/2016 só vale para os lojistas do Paraná)? Quantas compras foram canceladas por ter o consumidor se sentido lesado quanto ao preço? Quantas ações judiciais trataram da questão? Ora, sem fazer tais reflexões, a ação legislativa não se justifica, servindo apenas para diminuir a competitividade do e-commerce e favorecer indiretamente o lojista tradicional.

Colaborou Márcio Cots, sócio do COTS Advogados, escritório especializado em Direito Digital e E-commerce, e membro da Diretoria Jurídica da ABComm – Associação Brasileiro de Comércio Eletrônico. Também é professor universitário de Direito Digital nos MBAs da FIAP, FIA/USP e de legislação do e-commerce em outras instituições. Atua assessorando empresas no Brasil, EUA, França e Angola em assuntos relacionados ao Direito Digital e ao Comércio Eletrônico.

Publicado originalmente na Revista E-Commerce Brasil