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Dilemas do e-commerce brasileiro: regulamentação estatal e autorregulação privada

Por: Ricardo Amorim Flório

Graduando em Direito pela Universidade Candido Mendes (UCAM) - Unidade Ipanema, Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense - Niterói, Secretário Geral do Diretório Acadêmico da UCAM, pesquisador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Digital (GEPEDD) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Negociação (GEPEN). Conquistou o 1º Lugar do Concurso Nacional de Monografia Jurídica “Orlando Di Giácomo Filho”, 2020, com o tema: “A atividade do advogado e as mídias sociais: vantagens e limites”, realizado pelo Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (CESA)/SINSA.

Apoiado na lição internacional, o e-commerce brasileiro — ainda longe de competir com as grandes corporações digitais sediadas nos países centrais da economia — soube apropriar-se das vantagens competitivas desse tipo de comércio. Isso porque ele se adaptou às idiossincrasias do multifacetado mercado brasileiro. Tal situação não se concretizou sem o amparo mínimo legal do modelo de comércio eletrônico, publicado em 1996 pela UNCITRAL (Comissão das Nações Unidas para o Comércio Internacional). Na ocasião, buscava uniformizar o trato de questões de natureza comercial ocorrida no âmbito da internet, de forma a proteger as partes envolvidas nesse tipo de transação.

O e-commerce brasileiro tem suas leis pautadas essencialmente na proteção da relação consumerista. Todavia, diante deste cenário, tem surgido a necessidade de as empresas digitais otimizarem suas próprias ferramentas e meios. Tudo para atender às expectativas e ditames de uma nova economia firmada no desenvolvimento econômico e social. Neste sentido, em que pese não haver um marco regulatório específico para o setor, além dos atuais dispositivos normativos que proporcionam alguma segurança jurídica (Código Civil de 2002, Código de Defesa do Consumidor – CDC etc), os estabelecimentos virtuais devem se adequar a este ambiente de sinergia, em que a horizontalidade das relações proporcione resultados satisfatórios tanto para os consumidores como para os empresários digitais.

Na comparação entre o e-commerce internacional e o nacional, é possível identificar peculiaridades que remetem à maior participação dos países centrais da economia no PIB global. Fundamentalmente, destacam-se a consolidação do quadro legal, fiscal e regulatório. Afinal, nesses países já se encontram desenvolvidos há décadas.

Aumento de confiança no e-commerce nacional

No âmbito nacional, o grau de confiança de empresários, investidores e consumidores em relação ao comércio eletrônico tem aumentado consideravelmente neste curto espaço de tempo. A rarefação ocasional de normas protetivas específicas tem motivado alguma desconfiança entre os entes envolvidos. Contudo, as próprias empresas digitais têm envidado nobres esforços na comunhão protetiva deste nicho de mercado. Isso ocorre por meio de ações e soluções tecnológicas e das leis disponíveis até então.

O Código Civil e o CDC têm auxiliado nesse movimento protetivo da relação consumerista, ao par, ainda, do Decreto 7.962/2013 — que regulamenta o CDC em relação à contratação no comércio eletrônico. Ainda, merece destaque a vigência da Lei 12.965, de 23 de abril de 2014. Ela é conhecida como o Marco Civil da Internet, cujos conceitos e princípios são aplicáveis ao contrato eletrônico. Ainda, no limiar de 2020 entrou em vigor o Decreto 10.271. Neste caso, trouxe garantias protetivas aos consumidores nas operações de comércio eletrônico no âmbito do MERCOSUL.

Quanto aos negócios estabelecidos entre empresas digitais sediadas em outros países, aplica-se a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB). No caso, ela trata da obrigação do fornecedor (empresário) relativa à oferta de produtos e serviços, respeitada a localidade em que tais foram ofertados.

Atenção às legislações europeias

Com o advento da declaração de direitos de liberdade econômica, instituída pela Lei nº 13.874/2019, o e-commerce se fortalece nas relações empresariais e civis paritárias. Ocorre na medida em que o aparelho estatal estabelece a proteção à livre iniciativa e ao livre exercício da atividade econômica (art. 1º). Neste caso, afasta um pouco o seu poder interventivo, dando ensejo à empresa digital para que, pautadas na boa-fé e no respeito aos contratos (art. 2º), possa expressar sua autonomia na relação negocial.

Com relação às legislações do e-commerce nos países centrais da economia, merecem destaque as que se encontram no âmbito do bloco europeu. Afinal, apresentam marco legal bastante abrangente, consubstanciado na Diretiva 2000/31EC. A Diretiva europeia não se concentra tão somente no viés regulamentar da relação de consumerista — caracterizada pelo embate consumidor/usuário versus empresa/fornecedor. Mas, sim (enquanto normatização da atividade econômica digital), objetiva ampla proteção para além da responsabilidade civil. Ela dota o empresário digital de maior poder autorregulatório, de maneira que se estabeleça, entre os entes envolvidos, um ecossistema harmônico e de bem-estar.

Projetos legislativos para o e-commerce e seus dilemas

Até o momento, as ações do Poder Legislativo sobre e-commerce em geral têm sido concentradas no Projeto de Lei (PL) nº 3.514/2015 (atualmente apensado ao PL 4.906-A/2001). Lembrando que ambos são da lavra do Senado Federal. Tal proposta legislativa objetiva alterar algumas disposições gerais do CDC sobre a relação consumerista no comércio eletrônico. Neste caso, os cujos termos têm se alinhado às premissas dos regulamentos internacionais.

Outros projetos de lei foram apensados ao PL nº 4.906-A/2001, que versam sobre especificidades do e-commerce. Entretanto, o panorama legal em curso nos direciona para algumas discussões diante da atual aceleração das inovações disruptivas. É preciso refletir sobre a eficiência e eficácia das normas voltadas para as particularidades do e-commerce. Principalmente ao considerar que o ente governamental tem demonstrado pouco ou limitado conhecimento técnico na produção de regras para o setor. E, consequentemente, percebe-se que o ente privado (empresa) acaba por assimilar tais virtudes que resultam em uma espécie de “caldo cultural” corporativo. Isso tende a promover, pelas circunstâncias próprias do ambiente concorrencial, normas de conduta com grau de detalhamento superior.

Exemplo promissor da autorregulação privada

Percebe-se que os textos normativos internacionais — em especial as Diretivas europeias sobre a regulação do e-commerce — apresentam em seu contexto sutilezas relativas à ideal cultura corporativa dos países integrantes do bloco, ancorada em princípios que sugerem práticas autorregulatórias. Espelhando-se nessa perspectiva, os entes governamentais e, muito mais, os entes privados, têm assimilado as lições de um modelo que, inevitavelmente, trará implicações para o melhor desenvolvimento da economia digital. Sem mencionar a questão sobre a adequação de normas e diretrizes junto aos mercados doméstico e global.

A diversidade dos meios e ferramentas digitais do e-commerce nacional — chatbots, tecnologia blockchain, mecanismos online de resolução de conflitos etc — impactam positivamente na credibilidade da relação de consumo. Além disso, tem repercutido, ainda que timidamente, em importantes avanços nas diretrizes de competitividade e concorrência. Ou seja, sinalizam para modelos promissores de autorregulação privada.

Urge, assim, a necessidade de que o Brasil otimize as estruturas do mercado digital. E o mesmo vale aos instrumentos legislativos na questão de viabilizar um ambiente regulatório a partir de entendimentos público-privados, em vista da celeridade dinâmica das tecnologias disruptivas do e-commerce.

Regulamentação, regulação, autorregulação: perspectivas futuras do e-commerce

Um dos maiores dilemas da economia digital, em especial do e-commerce, tem se concentrado em que medida a regulamentação estatal tem se tornado efetiva — a ponto de preservar direitos e deveres dos agentes envolvidos, em um ambiente de acelerada inovação tecnológica. Em contrapartida, quais movimentos ou ações têm sido realizados pelas empresas de comércio eletrônico, para além das normas e controles estatais, de forma a conceber um ambiente regulado de proteção integral dos negócios e seus agentes?

O controle estatal sobre o e-commerce tem se concretizado através de leis dispersas, conforme mencionado. Seus núcleos se assentam de forma direta e subsidiária na proteção ao consumidor, apoiados, ainda, no código civilista; nos regramentos referentes à prestação compulsória de informações que objetivam as contratações no comércio eletrônico; nas regras gerais de disciplina do usuário (consumidor) e provedores de serviços na rede mundial de computadores, etc.

O contexto de regulamentação do comércio eletrônico nos conduz à reflexão de que o legislador pátrio prefere pontuar aspectos específicos, que tem reclamado urgência, em vista de suas repercussões na sociedade de consumo. Não à toa, conforme se depreende da análise do PL 4906-A/2001, ao invés de se integralizar os temas propostos sob um único comando legal — ou seja, na forma de uma lei única —, tem se verificado a profusão de novos temas, de forma a perpetuar o seu definitivo regramento.

Autorregulação ou autorregramento

No contexto internacional, destaca-se ainda o regulamento europeu 2019/1150. Ele prevê expressamente que suas regras não devem ser interpretadas para limitar o potencial de inovação das empresas que oferecem esse tipo de serviço de intermediação (marketplaces). Ou seja, revela o objetivo de proteção das partes envolvidas e o crescimento do setor. Tal regulamentação confere maior liberdade de ação para as empresas de e-commerce. Afinal, já possuem em sua estrutura suas normas e suas políticas de procedimentos que cumprem, total ou parcialmente, as disposições do regulamento. Portanto, este apenas traz critérios mínimos aplicáveis aos agentes de mercado.

Entende-se, com base na experiência internacional, que o comércio digital tem incentivado mecanismos espontâneos ou induzidos de regulação de interesses econômicos e sociais ou de relações e de práticas comerciais dos vários agentes econômicos. Tais mecanismos são os que denominamos “autorregulação”. Suas premissas encontram-se dispostas também em outro parecer internacional (Comitê Econômico e Social Europeu nº 2015/C – 291/05).

A autorregulação ou autorregramento caracteriza-se pela “existência de regras comportamentais desenvolvidas como compromissos morais ou éticos autoimpostos, em típica manifestação de auto-organização não estatal¹”. No caso brasileiro, como sabemos, inexiste a atividade regulatória no formato de Agência Reguladora para o setor e-commerce. Existe, sim, normas dispersas que regulamentam as relações de consumo. Elas descortinam, por assim dizer, a possibilidades de autorregulação com ou sem a presença do Estado.

Adequação ao mercado global

As insuficiências dos comandos normativos aplicados à economia digital têm influenciado cada vez mais movimentos alternativos de autorregulação das empresas e-commerce. Um dos aspectos é o descompasso entre a lei e a prática comercial no ambiente virtual. Ou seja, o fenômeno do pacing problem (problema entre a maior velocidade de inovação tecnológica e o ritmo mais lento da atuação normativa do Estado). Ele tem sido fonte de preocupação para a boa governança da economia digital.

Neste contexto, vale apresentar uma breve consideração sobre a modalidade importada do Direito Internacional que é a soft law, quando cogitamos esse descompasso frente ao pacing problem. Em contraposição à hard law (dispositivo normativo de força cogente), eleva-se a importância da normatividade flexível, baseada nas regras e usos de costumes praticados no mercado.

Como se percebe, o e-commerce nacional, ainda que a passos lentos, tem considerado ações e diretrizes de caráter privado. Isso ocorre como forma de estabelecer a governança tecnológica em sintonia com a regulamentação estatal. Trata-se, sobretudo, da ratificação dos padrões de confiança, os quais estão diretamente relacionados aos altos níveis de concorrência na economia digital. E, por conseguinte, à adequação e integração ao mercado global — que passa a exigir de seus agentes melhores códigos de ética e de boas práticas.

Expansão de fronteiras do e-commerce nacional

A arquitetura da soft law, no contexto da economia digital, nos remete ainda à nova lex mercatoria², originalmente trazida do contexto do Direito Internacional e, na atualidade, cognominada lex informatica³. A lex informática tende a penetrar progressivamente o e-commerce. Isso ocorre na medida em que os meios e ferramentas digitais em constante evolução consolidem movimentos autorregulatórios das empresas virtuais — ou, ainda, antecipem conteúdos de projetos de lei em discussão, os quais têm agravado o já citado pacing problem.

Enfim, em meio à globalização, o e-commerce nacional tem expandido suas fronteiras. Por consequência, tem aperfeiçoado os comportamentos empresariais em relação aos seus pares, à sociedade e ao Estado — os quais têm sido consolidados sob paradigmas internacionais de autogestão e da promoção de melhores práticas que se correlacionam aos já aplicados preceitos constitucionais que cercam a boa-fé.

1 – ARANHA, M.I. As formas de autorregulação
2 – A lex mercatoria remonta à Antiguidade. Revela-se como um sistema jurídico desenvolvido pelos comerciantes europeus, por volta dos séculos X e XI. Tem por base os usos e costumes do comércio local e internacional na regulação das transações comerciais.
3 – A lex informatica é entendida como um conjunto de regras de conduta imposto pela tecnologia da informação. Consiste na utilização das redes de computadores e da internet. Caracteriza-se por um sistema paralelo de regras com expressão própria, podendo ser jurídica e, por vezes, concorrentes.