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A criticidade do processo de e-commerce

Por: Fernando Di Giorgi

é ex-sócio fundador da Uniconsut Sistemas, empresa especializada em back-office para grandes lojas de e-commerce. Fomado em Matemática pela USP, pós-graduado em Administração pela FGV e em Análise Econômica pela FIPE, mestre em Economia pela PUC-SP.

O objetivo deste artigo é discorrer sobre o e-commerce como sistema integrado extremamente crítico. Esse assunto é velho e tem sido abordado com muita frequência. Na prática, seus ensinamentos são plenamente conhecidos nas grandes lojas virtuais, mas quase desconsiderados na maioria das lojas médias – muito embora a diferença entre os dois segmentos seja de escala e não natureza funcional, afinal, o negócio em si é o mesmo. E essa é a razão da insistência.

Para efeito de clareza, o artigo utiliza o recurso da analogia (sempre imperfeita), fazendo uso de um dos modelos usados na integração da cadeia logística da indústria automotiva. 

1. A cadeia produtiva de uma montadora

Nos anos 90, como consequência do processo de globalização, as cadeias produtivas foram descentralizadas com a finalidade de reduzir o custo de produção a partir da alta especialização e do aumento do volume de cada uma de suas unidades produtivas espalhadas pelo mundo. Assim, os componentes (autopeças) do produto final (automóvel) deixaram de ser fabricados próximos ao local de sua montagem. 

Os fatores básicos para a determinação da localização da montadora foram custo, qualidade e preço da mão de obra, e a tributação e a logística, tendo em vista o mercado consumidor. 

O transporte (logística em seu sentido restrito), em seus diversos modais, é responsável pela ligação entre as unidades produtivas dos componentes e a montadora. Os componentes remetidos são armazenados num Centro de Distribuição que alimenta a linha de montagem – é importante notar a separação entre a logística interna e a linha de montagem. 

A montagem dos automóveis é programada segundo a demanda de mercado oriunda das concessionárias, minimizando o estoque de produtos acabados. Da demanda, deriva a lista de componentes a serem requisitados ao Centro de Distribuição. Cabe aos “cegonheiros” remeter os veículos às concessionárias segundo a demanda que deu origem à programação da produção.

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Os riscos do funcionamento da cadeia produtiva descentralizada, entendida como sistema, seriam:

  • Erro no planejamento central, desequilibrando o sistema;
  • Unidade produtiva atrasa a produção;
  • Unidade produtiva entrega componentes com índice de defeitos além do que é considerado normal;
  • Logística descumpre tempo padrão de entrega, provocando rupturas de estoque;
  • Centro de Distribuição atrasa a separação da lista de componentes requeridos pela linha de montagem para o próximo ciclo de produção;
  • A linha de montagem apresenta ritmo irregular.

Tratando-se de uma cadeia produtiva, a qualidade dos componentes, a estabilidade dos processos e a precisão da logística são fundamentais no cumprimento do planejamento centralizado. Tais elos conectados pela logística, por simplicidade, denominamos interfaces entre as partes do sistema.

Interface física

Interface física é logística outbound: meios de transporte, infraestrutura portuária, trâmites burocráticos etc. A globalização forçou a vinda de muitas empresas internacionais de logística para o Brasil. Ainda que restritas ao transporte e, por medida de segurança, racionalidade administrativa e redução de custos, as empresas passaram a terceirizar a armazenagem e a distribuição, gerando o mercado de Operadores Logísticos.

Armazenagem é um serviço estranho ao setor de transporte. Enquanto os terminais de carga recebem a mercadoria com o destino final pré-estabelecido (o sistema que suporta essa operação é chamado Transport Management System – TMS), os centros de distribuição as recebem e depois são informados do destino das mercadorias. Armazenar e expedir com prazo previamente acordado, sem que se tenha controle da demanda desses serviços, exige sistemas complexos (o sistema que suporta essa operação é chamado Warehouse Management System – WMS).

As transportadoras não têm sido felizes em incluir armazenagem e expedição entre suas funções. Por outro lado, muito embora a legislação permitisse, os operadores logísticos careciam de capital e volume para incluírem o transporte em seus serviços, assim seus depositantes indicam as transportadoras.

TMS e WMS nunca se deram muito bem.

Interface lógica: elo entre módulos independentes de software do sistema

Interface lógica é chamada middleware, a logística da informação; um programa mediador entre aplicativos independentes. O fato de a interface lógica prescindir da intervenção humana não a exime de riscos e custos. Ela pode ser interrompida por queda de conexão, erro de conteúdo, erro de formato, erro de endereço eletrônico, alterações de formato, controle de duplicidade, omissões de informações etc., exigindo controle contínuo para impedir a descontinuidade operacional.

Em geral, quem produz sistemas onde alguns módulos são independentes (instalação modular) obriga-se a desenvolver middlewares, portanto, nem sempre se trata de um “puxadinho”.

Para reduzir as interfaces lógicas, é necessário projetar e desenvolver o novo sistema, abrangendo todas as suas funções ao mesmo tempo. A questão é que nem sempre isso é possível e, quando é, é adiado devido ao enorme desafio intelectual. A prática tem mostrado que somente profundas rupturas tecnológicas são capazes que impelir as empresas a reconstruir sistema integrado de missão crítica.

Para facilitar a analogia com o e-commerce, é preciso uniformizar a terminologia até então usada:

  • Unidades produtivas passam a ser fornecedores;
  • Componentes fabricados pelas unidades: itens;
  • Logística outbound passa a ser responsável pela conexão fornecedor – Centro de Distribuição e pela conexão Centro de Distribuição – clientes finais por meio de Couriers;
  • O Centro de Distribuição será unido à Montadora, formando uma unidade constituída de várias peças de software, o que chamamos de Backoffice integrado;
  • As demandas dos clientes são capturadas pelo site e remetidas ao Backoffice.

2. Comércio eletrônico: sistema integrado 

O comércio eletrônico opera num mercado competitivo (os empresários têm iniciativas próprias e também devem se submeter às inovações de seus concorrentes), e suas principais características são:

  • Processamento de alto volume de informações;
  • Opera com grande variedade de oferta (muitos itens disponíveis);
  • Obriga-se a minimizar o prazo de atendimento;
  • Oferece cobertura nacional de entrega – atende consumidores de todos os estados da federação.

Seu sistema de controle tem interfaces incontornáveis. As físicas são fornecedores e consumidores; e a lógica une o e-commerce com as transportadoras. 

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O planejamento operacional (o núcleo central da “montadora”)

O sistema integrado de comércio eletrônico exige alto nível de planejamento. Seguem alguns gargalos observados em histórias recentes das grandes lojas virtuais brasileiras:

  • Atraso no pagamento aos fornecedores devido ao desbalanceamento de caixa, exigindo que os fornecedores reajam subindo o preço de venda, para torná-lo compatível com o real prazo de pagamento. Entre outros fatores, esse fenômeno é explicado pela intensa concorrência entre as lojas e o alongamento do prazo de recebimento;
  • Investimento em marketing superior à disponibilidade de estoque – as compras não foram feitas em conformidade com os investimentos em mídia;
  • Reabastecimento de estoque superior à capacidade de armazenagem – fato que ocorre principalmente às vésperas de datas festivas, quando se compra mais em volume do que se pode armazenar;
  • Pedidos de vendas aceitos sem condições de serem expedidos ou transportados – venda superior à capacidade de separação ou de entrega – uma das causas do “apagão” de 2010.

Tais erros provocam danos de imagem e prejuízos financeiros dificilmente reversíveis. Eles têm como origem a rigidez da oferta dos serviços de logística interna e externa (não é possível ampliá-los a curto prazo), tendo em vista a flexibilidade na captura dos pedidos (em tese, limitados apenas pelo desempenho da loja e pela existência de estoque disponível) e das compras (limitadas pela capacidade de pagamento).

A harmonia entre o volume de vendas, a capacidade de armazenagem, de expedição e de transporte é a principal qualidade de um dirigente de e-commerce. 

O abastecimento do Centro de Distribuição

As grandes lojas de e-commerce no Brasil chegam a ter mais de 500 mil SKUs em estoque. Pode-se imaginar o que significa a gestão desse estoque, evitando rupturas e excessos não vendáveis. Embora existam fornecedores com alto nível de pontualidade na entrega, com a diversidade citada, não é difícil imaginar que os tempos de reposição sejam irregulares.

O transporte do fornecedor ao Centro de Distribuição é contratado pelo fornecedor, então há irregularidade no tempo de entrega prometido, e a isso soma-se a incerteza do transporte contratado.

O mercado fornecedor do e-commerce é rústico quando comparado com o ambiente extremamente controlado dos fornecedores de autopeças especializados espalhados pelo mundo. 

Backoffice: a linha de montagem do e-commerce

Em tese, todas as funções internas do Backoffice deveriam ser integradas (inexistência de interfaces lógicas, vide figura abaixo). Lamentavelmente, isso ainda está longe de acontecer e deve demorar. Os mais recentes sistemas de Backoffice desenvolvidos ainda são uma reunião de peças independentes, e a união entre elas é feita por meio de middlewares específicos, invisíveis e impenitentes. Embora com baixo risco de descontinuidade, tais ligações não deixam de ter seu custo em termos de redução do desempenho e de flexibilidade, dificultando processos reversos.

As peças de software interligadas são:

  • A captura dos pedidos de venda (Site) e
  • O Backoffice, conjunto que reúne peças ERP, WMS, Atendimento ao Cliente (SAC) e Transporte.

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As interfaces externas (API – Application Programming Interface) ligam a plataforma com a análise de fraude, gateway de pagamentos e transportadoras (TMS). A troca de informações com as transportadoras é a mais negligenciada, em virtude do pouco investimento delas em TI e da intensidade e frequência das informações sobre o estado da entrega do pedido.

Sistemas de grande porte, integrados em tempo real funcionam em tempo integral (24×7), razão pela qual são severamente protegidos para serem estáveis (imagine o sistema de controle da rede de metrô, sistema integrado de distribuição de energia elétrica, internet banking). Quando há alterações, elas são depuradas (eliminação de bugs) em alguns meses de funcionamento, e evita-se ao máximo que as mudanças sejam frequentes por serem fontes de instabilidade (ocorrência de um “apagão”).

O grande problema é que a inventividade comercial do varejo eletrônico competitivo força mudanças contínuas no site e no Backoffice, principalmente em função de sua profunda dependência da tecnologia de informações (campo decisivo da concorrência entre elas). A criticidade própria de um sistema integrado complexo é acentuada pela dinâmica do mercado e pelo contínuo avanço no hardware e no software.

Para fazer frente à demanda de novas funcionalidades e modificação nas funções existentes, as alterações no sistema (patches) são construídas em blocos e instaladas ciclicamente. Esse procedimento permite à equipe de TI um período de observação para depurar o sistema em função do lote de modificações recém-introduzidas. Em geral, devido às pressões internas, um ciclo tem se superposto a outro, não dando tempo suficiente para a correção de erros do ciclo anterior. Isso dificulta a identificação da falha e aumenta o tempo de reparo. A qualidade da equipe de TI é inversamente proporcional à duração do ciclo de mudanças.

Um drama para o e-commerce é que quando a “linha de montagem” está começando a ficar habituada com a rotina de trabalho, ela é mudada.

  • A entrega ao cliente: logística outbound

O consumidor recebe a mercadoria em casa e dentro do prazo pré-estabelecido quando foi firmado seu contrato de compra. Assim, o Backoffice entrega as mercadorias ao Courier e este deve entregá-las ao cliente dentro do prazo acordado por contrato com a loja.

Se o Courier falha, foi a loja que falhou. Deduz-se, então, que o serviço do Courier é um serviço da loja. O problema é que ela não controla o Courier e tem que confiar nas promessas dele – principalmente em sua capacidade instalada (aceitação do nível de carga). Caso a carga seja superior à capacidade, o Courier atrasa a entrega. Para efeito de informação, o nível de confiança na pontualidade da entrega dos Couriers tem sido em torno de 95%. Os 5% restantes fazem muito barulho!

Há uma máxima da engenharia de processos: movimentar materiais é arriscar-se ao dano; daí a obsessão da engenharia por processos integrados. No transporte ocorre de tudo: roubo, extravio, avaria, cliente ausente etc. Tais ocorrências exigem imediato conhecimento para disparar ações corretivas, dando origem a uma função de grande importância: o monitoramento da entrega, a contínua vigilância do serviço do terceiro.

3. Considerações finais 

  • A alta dependência tecnológica do e-commerce cria a ilusão de que todos os seus processos operacionais possam ser alterados no mesmo ritmo das modificações em programas, esquecendo-se das limitações de seus componentes físicos.
  • As plataformas integradas de software para e-commerce em uso no Brasil não foram concebidas para abarcar todas as suas funções básicas num projeto de desenvolvimento único, razão pela qual têm gerado custos crescentes de manutenção e alongamento do ciclo de mudanças a comprometer a dinâmica exigida pelo comercial e marketing.
  • Organizações que faturam mais de R$ 5 bilhões por ano e processam mais de 10 milhões de pedidos estão exigindo um núcleo de planejamento e inteligência de processos (estatística e modelagem matemática) com status de diretoria.
  • Ainda num esforço de integração (eliminação de interfaces) e redução de custos, espera-se que as grandes lojas internalizem a Análise de Fraude e Gateway de Pagamento;
  • Soluções que juntem o site com o Backoffice de um mesmo fornecedor de software, ainda que unidas por middleware, serão oferecidas ao mercado de lojas médias (elas são imunes à pressão de desempenho) a preços mais reduzidos de instalação e manutenção;

O sucesso no e-commerce está intimamente ligado à rapidez e à qualidade do atendimento, competências a exigir a integração fina entre todas as suas atividades. Como a integração é diretamente proporcional ao risco, o crescimento marginal do e-commerce tem custos crescentes, fator que o leva à oligopolização.