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Ainda sobre marketplace...

Por: Fernando Di Giorgi

é ex-sócio fundador da Uniconsut Sistemas, empresa especializada em back-office para grandes lojas de e-commerce. Fomado em Matemática pela USP, pós-graduado em Administração pela FGV e em Análise Econômica pela FIPE, mestre em Economia pela PUC-SP.

De todas as novidades que gravitam em torno do comércio eletrônico, a principal delas é o Marketplace. Ele assinala um ponto de mudança no grande varejo eletrônico. Internamente, ele afeta a composição da receita, a lucratividade, o capital de giro, os custos variáveis, o peso relativo das áreas funcionais, o desenvolvimento de novos organismos e competências, e a política de investimentos. Externamente, ele modifica a cadeia de distribuição de mercadorias, estimula a concentração de lojas de nicho e concentra o mercado de desenvolvimento de software para e-commerce.

A discussão sobre os desdobramentos do Marketplace é o objeto deste artigo. Iniciamos com as modificações internas.

A composição da receita
A mais importante habilidade da grande loja virtual sempre esteve orientada para as vendas de mercadorias com a maior margem de que fossem capazes, minimizando as despesas administrativa, financeira e logística. Em síntese, comprar para vender o mais rápido possível e com o maior diferencial de preço. O B2B e o B2B2C, embora funcionalmente diferenciados e com intermediação de terceiros, sempre tiveram como foco a venda de mercadorias. A receita do Marketplace independe da venda de mercadoria própria, ela não é proveniente das competências na comercialização de mercadorias, ela se nutre de investimentos altíssimos realizados ao longo dos anos na plataforma tecnológica, no prestígio da marca e do tráfego.

Lucratividade
A taxa de lucro do Marketplace (captura do pedido e venda por terceiro) é, pelo menos, três vezes maior do que se a venda fosse com mercadoria própria. Em outros termos, para se obter o mesmo lucro, a receita de um real no Marketplace equivale à receita de, pelo menos, três reais na venda de mercadorias próprias. Com isso, dá para entender para onde as coisas caminham, muito embora tenham seus limites.

Redução do capital de giro
Se a taxa de lucro de uma operação via Marketplace é mais lucrativa do que a venda própria, então qual a razão de um lojista fazer parte do Marketplace? Há uma grande variedade de razões, entre elas: (i) há categorias muito especializadas em que as lojas de nicho são muito mais eficientes que o grande varejo; (ii) os pequenos lojistas se autoexploram ao não considerarem seu trabalho operacional como despesa; (iii) os lojistas consideram que a receita marginal da venda por meio do Marketplace é superior ao custo marginal, principalmente pela economia nas despesas que teriam com propaganda, meios de pagamento e software; (iv) cresce o nível de atividade da loja, aumentando a rotação de estoque, diluindo despesas fixas e melhorando o poder de compra.

Ao não trabalhar com mercadoria, o Marketplace reduz seu estoque próprio por dois principais motivos: deixa operar com categorias em que é menos eficiente e aumenta a variedade da oferta sem necessariamente aumentar a variedade de seu estoque. Com isso, as grandes lojas que operam com Marketplaces deverão operar com mercadorias de alto giro e alto valor unitário, categorias inacessíveis aos pequenos lojistas devido à restrição de crédito e ao poder de compra.

Redução de custos variáveis
O Marketplace encarrega-se da prevenção de fraude, das despesas com pagamentos e charge back. Tais custos estão embutidos na taxa cobrada do lojista associado. Porém, ao explicar a cobrança ao lojista, o Marketplace exibe a tabela de preço pela qual o lojista seria cobrado por esses serviços quando contratados diretamente por ele com os respectivos fornecedores. Mas a tabela de preço de tais serviços para o Marketplace é outra, pois as tarifas são reduzidas quando o volume aumenta, ou seja, as tarifas cobradas não são aquelas realmente praticadas. Além desse ganho, aumenta o poder de negociação do Marketplace em relação aos fornecedores de serviços devido ao aumento de volume, resultando na redução ainda maior de custos.

É preciso ressaltar uma exceção. Como o Marketplace quer o consumidor para si, ele se obriga à função de atender seus consumidores. Esse atendimento é muito mais ineficiente do que o atendimento dos consumidores de mercadorias próprias do Marketplace. A razão é simples: o fulfillment é externo, portanto, parte importantíssima do processo de venda ainda não é controlada nem gerenciada pelo Marketplace.

Não seria errado afirmar que, para as grandes lojas que operam como Marketplaces, o custo marginal de um pedido por eles capturado a ser atendido por um lojista associado, dotado de boa infraestrutura técnica, tem custo marginal muito próximo de zero.

Modificação do peso relativo das áreas funcionais
O peso político de cada área funcional está diretamente associado à sua correspondente agregação de valor ao produto/serviço final. Assim, o comercial é fundamental no varejo – comprar bem para vender rápido e com lucro. No e-commerce, o fim do ponto de venda e o aumento desmesurado da variedade promoveram a logística (incluindo o SAC), assim como a tecnologia da informação – esse tripé, quase que em igualdade de condições entre eles, vem concentrando a tomada de decisões. No entanto, o Marketplace não pressiona as áreas funcionais na mesma direção, ele enfraquece a logística e o comercial, e enaltece ainda mais a tecnologia da informação. Não é à toa que as grandes empresas querem agregar a palavra “digital” em suas denominações. Aí reside uma questão com a qual os bancos estão bem acostumados: como conciliar as boas estratégias de negócio com as boas estratégias tecnológicas? A conjunção dessas habilidades é incomum.

Desenvolvimento de novos organismos e competências
As grandes lojas do varejo eletrônico nunca venderam serviços independentes de mercadorias. A comercialização de mercadorias se encerra na entrega, com a possibilidade de 2% a 3% de continuidade em caso de devolução. Porém, o serviço de captura de pedidos e atendimento aos consumidores (com fulfillment do lojista associado) é contínuo e reafirmado a cada pedido. Esse tipo de trabalho é estranho à tradição do varejo eletrônico e deve gerar conflitos internos por duas principais razões: (i) os diretores são oriundos do varejo e estão umbilicalmente ligados à mercadoria e ao relacionamento com consumidores, e não com parceiros (relação de longo prazo); (ii) o Marketplace não é o principal gerador de receita, portanto, tende a receber menos atenção da diretoria em suas especificidades.

A política de investimentos
A redução de estoque, de área de armazenagem, de pessoal comercial e de logística libera capital e reorienta investimentos. A melhoria da lucratividade acrescenta capital. Porém, a necessidade inovar e de acompanhar as inovações dos concorrentes requer maiores investimentos adicionais em tecnologia da informação. Além disso, o aumento do tráfego e da taxa de conversão, vitais como justificativa da taxa cobrada dos associados, requer investimentos em publicidade.

Vamos agora considerar as mudanças que podem ocorrer no mercado.

A cadeia de distribuição de mercadorias
O comércio eletrônico, por si, incorporou no software parte significativa das habilidades e recursos do lojista. Agora, o Marketplace libera o lojista associado do investimento e do conhecimento de parte fundamental da tecnologia referente à captura de pedidos e atendimento aos clientes. Ou seja, o Marketplace permite que o lojista possa usar um novo canal de vendas, no limite, sem ter loja virtual. Essa possibilidade abre caminho para que qualquer elo da cadeia de distribuição possa vender diretamente para o consumidor final. A indústria terá a possibilidade de vender para o consumidor, assim como o atacadista, mas terão que se adaptar ao fracionamento da expedição e ao acompanhamento da entrega.

Concentração de lojas de nicho
As lojas de nicho, especializadas em mercadorias de baixa rotação de estoque, alta variedade e exigentes em conteúdo técnico e funcional, deverão ser privilegiadas, notadamente devido ao profundo e indispensável conhecimento do mercado fornecedor, características dos produtos e das preferências dos consumidores. Tais categorias deverão ser abandonadas pelos Marketplaces, e a própria concorrência se encarregará de selecionar as melhores lojas com o aumento das vendas pela visibilidade, variedade e preço. Esse processo é sempre concentracionista.

Concentração do mercado de desenvolvimento de software
O desenvolvimento da tecnologia da informação e da metodologia do desenvolvimento de sistemas impõe o ritmo de inovações no comércio eletrônico. As inovações não somente afetam o nível de desempenho operacional – fazer mais rápido aquilo que já se sabe fazer -, mas atingem também o modo de fazer o que já é feito e, o mais importante, abrem a possibilidade de fazer o que ainda não foi feito. Essa importância da tecnologia da informação e a instabilidade técnica no processo produtivo do grande varejo eletrônico geram significativos desdobramentos: (i) impede que a indústria de software possa produzir uma solução genérica e estável para os líderes de mercado; (ii) a tecnologia da informação passa a ser fator essencial na luta concorrencial; (iii) força a internalização do desenvolvimento de sistemas no grande varejo; (iv) impede o desenvolvimento autônomo de empresas de software que possam disseminar a tecnologia por meio da compra de seus ativos; (v) retarda o desenvolvimento tecnológico por restringir a geração de ideias inovadoras aos dirigentes da empresa detentora do software, e não aos dirigentes de várias empresas que poderiam utilizá-lo.

Marketplaces especializados
As grandes lojas do varejo eletrônico conquistaram tráfego por meio da marca, da qualidade dos serviços (pontualidade, atendimento pós-venda etc.) e da variedade da oferta. O Marketplace demonstra que a variedade continua importante como geradora de tráfego, mas que pode ser relativamente terceirizada, gerando grandes benefícios. Porém, essa vantagem pode ser transitória.

Como a busca da mais alta lucratividade é incessante, é de se esperar a disseminação dos Marketplaces. Assim, toda loja que já tenha conquistado tráfego por meio de investimentos anteriores terá que seguir esse caminho. Como as lojas de nicho serão aquelas que se notabilizarão, é provável que elas ser transformem em Marketplace especializado, reunindo tudo o que existir de mercadorias de uma determinada categoria, na qual, certamente, o consumidor achará o que quiser.

Ao livrar-se de categorias de baixa lucratividade, deixando para terceiros o ônus da incerteza das vendas, as grandes lojas estimulam o crescimento de concorrentes, a ponto de eles não mais precisarem pertencer ao Marketplace, centralizando inúmeras pequenas lojas do segmento. A possibilidade da ocorrência desse fenômeno está sendo obstruída pelas aquisições das empresas de desenvolvimento de software para e-commerce pelos Marketplaces já instalados.