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A centralização da oferta: bens de capital que se transformam em produto

Por: Fernando Di Giorgi

é ex-sócio fundador da Uniconsut Sistemas, empresa especializada em back-office para grandes lojas de e-commerce. Fomado em Matemática pela USP, pós-graduado em Administração pela FGV e em Análise Econômica pela FIPE, mestre em Economia pela PUC-SP.

Há ramos comerciais cujas lojas, especializadas numa mesma categoria e independentes entre si, concentram-se geograficamente para reduzir o custo da transação (ato de comprar) do consumidor, com a finalidade de encurtar seu tempo de compra, aumentando a variedade da oferta – é o caso de ferragens, materiais de marcenaria, confecções, componentes eletrônicos, autopeças para motocicletas etc.

Num modelo parecido, os shoppings centers centralizam num único imóvel lojas independentes entre si e diferenciadas do ponto de vista da oferta.

Em outros ramos, grandes lojas, estrategicamente dispersas, concentram em si uma vasta gama de artigos com a mesma finalidade, como os supermercados.

Há, ainda, ramos comerciais em que a oferta de produtos ou de serviços não é e não pode ser concentrada, como imóveis – estáticos e aleatoriamente distribuídos pela cidade -, taxis, que transitam quase todo tempo, serviços de hospedagem etc.

Nesses últimos exemplos, o encontro da demanda com a oferta adequada é mais difícil, a ponto de, em alguns tipos de transação, exigirem intermediação, cujo custo é diretamente relacionado ao valor transacionado.

Este artigo tem dois objetivos. O primeiro, ressaltar o potencial de uso das tecnologias usadas para atender às necessidades operacionais do comércio eletrônico.

O segundo, mostrar que a inovação não se limita à tecnologia em si, ela também está presente nos particulares arranjos de ferramentas preexistentes e em largo uso.

Tais arranjos estão subvertendo o funcionamento de mercados tradicionais, confrontando privilégios de mercado, colidindo com normas tributárias etc.

Para isso, o artigo aborda a centralização da oferta como força motriz de negócios, a extensão do uso da plataforma de controle de fluxo de trabalho como peça central em negócios, antes confinada a sistemas de informação, e, por fim, descreve dois serviços bem conhecidos e diferenciados que se utilizam desses princípios: marketplace e agenciamento de transporte de passageiros por automóvel (Uber, 99Táxis).

A centralização do conhecimento da oferta e da demanda de serviços

Não é difícil perceber que a dificuldade do encontro oferta-demanda somente pode ser reduzida com a centralização, em tempo real, do conhecimento, da identificação e da localização das ofertas disponíveis e das demandas a atender.

Com o uso de várias tecnologias preexistentes (quase todas amadurecidas no comércio eletrônico), essa centralização está se constituindo num empreendimento autônomo, cuja receita é parte do trabalho e uso do capital de terceiros a partir da intermediação oferta-demanda.

Outros exemplos além dos já citados ilustram o fato: a troca de informações entre corretores sobre imóveis disponíveis, aluguel de imóveis para curta estadia etc.

A potência desses “velhos negócios”, operados com alta tecnologia, é imensa. Eles têm se tornado capazes de controlar grande fatia de mercado de determinados tipos de serviço com uso exclusivo de uma plataforma virtual de controle de processo de trabalho, e de comandar e avaliar o trabalho de seus associados a partir da geração do serviço e sua conclusão com o pagamento.

Plataforma de controle de processo de trabalho

A plataforma centralizada de controle de processo, contando com o cadastramento de prestadores e tomadores de serviços, é composta por uma rede de atividades (internas ou externas) e componentes do processo, devidamente sequenciadas que replicam o fluxo real do trabalho e incluindo todas as suas excepcionalidades (chamados fluxos alternativos).

Cada uma das atividades é dotada de lógicas próprias, tais como condição de disparo, a condicionalidade de ações a serem realizadas de acordo com dados recebidos etc.

O “processo produtivo” é movido por um engenho permanentemente atento às ocorrências relevantes e que aciona as atividades a elas correspondentes, considerando o histórico anteriormente realizado.

Exemplos de uso dessa plataforma: o controle do fluxo do pedido do cliente no comércio eletrônico, desde a sua captura até a entrega, incluindo a devolução; atendimento automático por meio de unidade de resposta audível (URA): atendimento de call center; controle de presidiários com tornozeleira eletrônica, rastreamento de carga, controle de trâmites de processos jurídicos etc.

Essas plataformas podem estar embutidas no próprio sistema – nesse caso, com uso muito específico, de alto desempenho e mais estável -, ou externas a ele – em geral, uma plataforma genérica desenvolvida pela indústria de software, altamente flexível, porém mais lenta.

Para utilizá-la, essa ferramenta de coordenação e controle requer um profundo conhecimento do negócio. Esse tem sido o mérito de quem está revolucionando o funcionamento dos “velhos negócios”. Em geral, todos eles concentram o controle da oferta dos prestadores de serviço (motoristas, corretores, proprietário de imóveis para locação etc.), são receptores da demanda dos tomadores de serviço e sua localização e, em alguns casos, chegam a determinar a regra de tarifação (caso dos serviços de táxi).

O encontro da demanda com a oferta

O conhecimento da oferta é obtido por meio de um aplicativo instalado no celular do motorista. Por georreferenciamento, é possível conhecer a localização de cada ofertante e o estado em que se encontra (livre, em serviço, indisponível).

A demanda, também perfeitamente localizada por meio do celular, é conhecida pela solicitação do tomador de serviço.
O encontro da demanda com a oferta, no menor prazo possível, é resultado do processamento centralizado: ele associa ofertantes, em condições de atendimento e devidamente selecionados, ao local da demanda. Um deles é escolhido.

A ordem de serviço

Com a concordância do tomador, uma “ordem de serviço” é gerada correspondente ao prestador, tomador e destino, sob controle permanente da central de controle para a tarifação – nesse caso, dependente da quilometragem e do tempo.

A ordem de serviço é encerrada (há vários eventos para encerrar uma ordem, e o mais comum é a chegada ao destino) quando o pagamento é registrado no aplicativo usando dados cadastrais previamente informados.

A tarifação e a receita

Como todo o acompanhamento tem que ser feito em tempo real, a tarifação pode ser alterada imediatamente (tal como precificação no comércio eletrônico), facilidade que é usada para manter o tempo médio de espera constante – se a demanda sobe, o preço também sobe para que a demanda se ajuste à oferta, mantendo o sistema equilibrado.

A tarifação também poderá ser usada como instrumento de poder monopolista: barreira de entrada à concorrência com a prática temporária de subsídios ou exercício da vantagem do poder de mercado auferindo superlucros.

A receita da empresa é um percentual da corrida – dessa forma, ela cresce na dependência direta do tamanho da frota e da jornada de trabalho dos motoristas associados. A receita cresce com o uso do capital de terceiros.

O comportamento de mercado

Os fatores de sucesso nesse mercado são: a qualidade do recrutamento (tipo de veículo, antecedentes do motorista e regras de atendimento), o tamanho da frota e a gestão da tarifa – tanto para equilibrar o sistema quanto para atuar como instrumento estratégico.

Como é fácil notar, a expansão da frota é imperativa para o aumento do faturamento de todas as partes e para a redução do tempo de espera. Essa sina empresarial, inevitavelmente, organiza o mercado de forma oligopolista, assim, a tarifa deixa de ser determinada pelas forças de mercado.

Conflitos internos ao modelo

Como em todo negócio, há conflitos de interesses entre a empresa proprietária da plataforma e seus associados: a redução de tempo de espera implica aumentar a frota, mas o crescimento da frota diminui a renda média dos motoristas pelo excesso de oferta.

Marketplaces – O encontro da oferta com a demanda

A loja-âncora, cujo maior patrimônio é o tráfego, abre seu espaço comercial para que pequenos e médios lojistas exponham suas ofertas ao lado das ofertas dela.

Devido à pouca visibilidade dos seus sites, os lojistas, isolados na Web, atraídos pela demanda potencial gerada pelo tráfego da loja-âncora, concentram-se no marketplace.

Essa imensa variedade de ofertas de distintos proprietários é reunida e controlada por uma plataforma tecnológica que não passa de uma versão ampliada do comércio eletrônico tradicional, considerando que parte das atividades do processo (fulfillment, entrega e reversa) passa a ser externa à loja-âncora, porém ainda sob seu controle.

A plataforma de controle é informada de todas as ocorrências das atividades externas por interfaces (ainda não em tempo real) diretas com os lojistas associados.

O preço de venda e a receita do marketplace

Tratando-se de espaço comercial concorrencial, os preços das ofertas são determinados pelos próprios lojistas, inclusive o prazo de entrega e o valor do frete.

A receita do marketplaces em troca de seu poderio mercadológico e serviços (prevenção de fraude, processamento do pagamento e despesas financeiras e primeiro atendimento aos consumidores) é um percentual sobre o valor da venda de seus associados.

Comportamento do mercado

Ao abrir espaço para a concorrência penetrar em seu espaço comercial, a loja-âncora tem muitas vantagens, constituindo-se num dos traços diferenciais mais marcantes do mercado de comércio eletrônico: o uso marginal de seu capital fixo imaterial – a plataforma de software sem desgaste físico e contabilmente depreciado; a redução do capital de giro (a mercadoria comercializada é de propriedade do lojista associado); a complementação da variedade de artigos impulsionando o aumento do tráfego; a melhoria da margem pelo abandono de categorias de baixa lucratividade deixando-as para os associados e a redução do custo marginal das vendas próprias pela maior utilização do capital fixo.

O sucesso dos marketplaces passa pelo aumento da variedade da oferta e do tráfego. Embora inter-relacionados, o primeiro fator envolve o aumento seletivo da quantidade de lojistas, e o segundo, a despesa com propaganda.

A tendência de médio prazo desse mercado é a estagnação devido à estrutura do mercado do comércio eletrônico. Admitindo as seguintes hipóteses: há, pelo menos, de 20 a 30 mil lojas virtuais em funcionamento regular, 50 lojas são responsáveis por 80% do mercado e 3 domínios respondem por 50%, é de se esperar que todas as lojas com muita visitação se transformem em marketplaces; parte importante do 20% restante do mercado (pequenas e médias lojas) não tem condições de cumprir as exigências mínimas para se associarem a um marketplace sem denegrirem a imagem da loja-âncora (atraso na entrega, descontrole de estoque, infraestrutura de software insuficiente, deficiências de gestão etc.).

Os marketplaces instalados têm sido incapazes de impor a exclusividade dos lojistas sem reduzir o percentual de comissão e, finalmente, todas as pequenas e competentes lojas farão partes de vários marketplaces simultaneamente. Assim, após um impulso inicial significativo no início da operação, a receita dos marketplaces deverá se estacionar, tendendo a ser repartida proporcionalmente à participação das lojas-ancora no mercado global.

Conflitos internos ao modelo

Ao admitir a concorrência em seus próprios domínios, as lojas-âncora estimulam o desenvolvimento de lojas de nicho promovendo a concentração desses segmentos de mercado, portanto, fortalecendo as lojas médias mais competentes, gerando pressões para a redução da comissão cobrada.

A melhoria da margem média da loja-âncora ao se desfazer de categorias com baixa rotação de estoque, alta diversidade de artigos e com particularidades logísticas modifica seu portfólio, concentrando-se em categorias vantajosas somente em grande escala e, portanto, mais concorrenciais em todos os sentidos.

A loja-âncora obriga-se a investir ainda mais para aumentar o tráfego, não só como necessidade própria, mas para honrar as promessas contratuais com os lojistas sob pena de abandono e, se possível, aumentar o percentual de comissão.