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Depois do coronavírus: 14 transformações que ficarão para o varejo e o consumo

Por: Marcos Gouvêa de Souza

Fundador e diretor-geral do Grupo GS& Gouvêa de Souza, membro do IDV – Instituto para o Desenvolvimento do Varejo, do IFB – Instituto Foodservice Brasil, Presidente do LIDE Comércio e membro do Ebeltoft Group, aliança global de consultorias especializadas em varejo em mais de 25 países.

Ambicioso e talvez prematuro. Existem aspectos que já neste momento podem ser antecipados de movimentos estruturais que impactarão o mercado, o varejo e o consumo. Resultado do cenário em explosiva transformação que começou pelo Covid-19 e foi exponenciado por um conjunto de outros fatores, controláveis e incontroláveis, caracterizando o “DC” atual — Depois do Coronavírus.

1 – Aceleração da consolidação do novo eixo geopolítico e econômico do mundo

É evidente que não é algo específico para varejo e consumo, mas tem (e terá) implicações também muito fortes em termos de abastecimento, marcas, logística, produtos e canais de vendas e relacionamento. Era um processo em evolução, mas está sendo agora acelerado o empoderamento da Ásia no epicentro da transformação geopolítica e econômica mundial. China, Coreia, Cingapura e outros países da Ásia se integram e encaminham soluções pragmáticas e rápidas para contornar o epicentro do furacão gerado pelo coronavírus.

Enquanto isso, países como Estados Unidos de um lado e Itália, Espanha e outros, em outra dimensão, demoraram em se sensibilizarem e mobilizarem para enfrentar o problema. E as consequências serão dramáticas no plano social, político e econômico, fragilizando ainda mais as lideranças políticas em todos esses países e ensejando movimentos de renovação.

2 – Redução da importância estratégica dos Estados Unidos para o Brasil — e para o Mundo

A ainda maior economia do mundo reduzirá sua importância estratégica para o Brasil por conta da necessidade de equacionar seus próprios problemas e dificuldade em apoiar outras economias. No âmbito do varejo e do consumo, isso pode significar redução da importância de marcas, canais, empresas e negócios envolvendo consumo a partir dos Estados Unidos. O movimento do Walmart recentemente, liquidando suas operações no Brasil e em outros países da América do Sul, já era uma sinalização desse processo.

Ante as dificuldades locais pela ação da concorrência, em especial no digital e mais especificamente da Amazon, preferiram recolher o time e concentrar esforços. Ainda que Amazon, na contramão desse movimento, se proponha a crescer de forma mais agressiva no Brasil no conjunto da obra — envolvendo empresas, negócios, marcas, lojas e conceitos norte-americanos —, haverá uma perda de relevância do que for criado, desenvolvido e operado a partir dos Estados Unidos.

3 – Aumento da importância econômica da China para o Brasil

Na mesma linha de raciocínio temos outro elemento, que também já estava em evolução, com a China que já havia se transformado no principal destino de produtos brasileiros; e em seguida teremos uma aceleração desse processo, tanto pelo lado da emergente e demanda de lá, como pela fragilização das importações de países ocidentais e em particular dos Estados Unidos, boa parte da Europa e América do Sul.

O desafio, e a maior oportunidade, será transformar essas exportações dominantes de commodities em exportações de produtos e marcas com maior valor agregado. Teremos, igualmente, num momento seguinte, o aumento da presença de empresas chinesas no mercado brasileiro, na fase inicial em áreas estruturais, mas avançando para outros setores incluindo finanças, varejo e consumo. E nesse vetor, é preciso alta dose de alienação no atual cenário, para manifestações despropositadas, desnecessárias e inconsequentes que possam afetar as relações entre os dois países pela importância estratégica que China tem e, crescentemente, terá com o Brasil.

4 – Aumento dos gastos globais com serviços no médio e longo prazo

No curto prazo haverá concentração de gastos com alimentos e medicamentos. Mas no médio e longo prazo tenderá a haver um aumento dos gastos com serviços — especialmente envolvendo saúde, educação, comunicação e outros. Superada a crise, em algum momento futuro haverá a recuperação dos gastos com turismo, lazer e entretenimento. Mas é um enigma se haverá uma compensação imediata do período de privação ou uma gradativa retomada por conta de um consumidor mais conservador, que irá emergir como resultado da crise vivida.

5 – A emergência do omniconsumidor-cidadão megaconectato e discriminante

Por conta do abissal crescimento do tráfego de dados e informações em ambiente recluso e mais tempo para consumo dessas informações, emerge um omniconsumidor-cidadão megaconectado e discriminante como nunca. Com o que é real, porém mais sensível também ao fake. Será ainda mais consciente e avaliará com mais profundidade e sensibilidade tudo que é recebido. Não podemos dizer, ao menos por enquanto, que essa análise tem maior racionalidade, pois definitivamente a sensibilidade com o drama que está sendo vivido é muito alta. E, em muitos casos, exacerbada pela comunicação aberta, especialmente por alguns veículos. Mas à medida em que o tempo passar serão filtrados conteúdos e fontes e novos comportamentos advirão dessa consciência, reposicionando relações e percepções — tanto com respeito a marcas, produtos, negócios e serviços, como questões políticas e sociais.

6 – Necessidade e conveniência mudam a participação dos canais de vendas e relacionamento. Consumidores aprendem novos hábitos que marcarão seus consumos futuros

Da mesma forma como aconteceu na crise financeira de 2007-2009 nos Estados Unidos — quando os norte-americanos “descobriram” os Warehouse Clubs, Clubes de Atacado, como Costco e outros e, em boa parte, mantiveram o hábito de comprar neles mesmo depois de superada a crise —, deveremos ter algo similar no mundo e muito especialmente no Brasil, com parcelas importantes da população aderindo ao e-commerce e o delivery. Esses sistemas crescerão ainda mais de importância como canais de vendas e relacionamento. Já era um movimento em rápida evolução, mas sua importância será acelerada de forma marcante por conta da percepção, quase que compulsória, de suas virtudes, limitações e oportunidades.

7 – Mudam participações e perspectivas para os players tradicionais do varejo

A capacidade, prontidão e condição de inovação e implementação de alguns players tradicionais do varejo ensejará mudanças relevantes nas participações de mercado. Isso favorecerá em especial as empresas mais “digitais” em sua proposta — e que consigam equacionar mais rapidamente os gargalos que se criaram em questões de logística, abastecimento, comunicação, crédito, pagamentos e outros fatores.

8 – Dramática mudança do “share of wallet” das diversas categorias no curto e médio prazo

Por absoluta necessidade e contingência à distribuição de dispêndios no curto e médio prazo para as diferentes categorias, será profundamente alterada em benefício de: alimentos, bebidas, medicamentos e produtos de limpeza, saúde e bem-estar e talvez algo em educação e eletrônicos. Tudo isso com prejuízos em moda, vestuário, calçados, material de construção e, fora do lar, lazer, diversão e turismo.

Ainda que o maior impacto ocorra no curto e médio prazo, parte desse comportamento será mantido posteriormente por conta de um consumidor mais ressabiado e cauteloso que deverá emergir de todo esse processo. Mas é verdade também que, na recuperação futura, alguns nichos de mercado tenderão a um mecanismo de compensação, aumentando gastos em categorias, produtos, marcas e serviços que foram contingenciados no período de crise.

9 – Aumento da infidelidade para produtos, marcas, serviços e lojas

De forma simplista, a necessidade é a mãe das virtudes. E por conta do quadro instaurado a necessidade se sobrepõe aos desejos, gerando redução da fidelidade de forma geral. O lado positivo é que, como compensação, aumenta a propensão à experimentação, o que favorece a “descoberta” de produtos, marcas, serviços e lojas que pode converter em preferência se o valor percebido for relevante suficiente para precipitar mudanças. Mas o movimento de “infidelização” já era algo desenhado e em evolução por conta do aumento exponencial da informação que chegava aos consumidores, estimulando a experimentação — e no período esse processo é exponenciado.

10 – Aceleração da redução de distância entre marcas e consumidores

Seja por conta do difícil quadro de abastecimento de curto e médio prazo; seja por conta de um movimento que já vinha acontecendo; passado o período mais agudo dessa crise instaurada, os fornecedores de produtos e marcas para o varejo tenderão a repensar suas estratégias de distribuição, criando canais diretos e exclusivos. Isso ocorrerá não só, mas usando especialmente os canais digitais — que aumentarão sua participação de mercado e porque podem ser implantados com menores investimentos e custos operacionais pela indústria. No futuro próximo teremos uma maior participação da indústria e de empresas de serviços indo diretamente ao consumidor, criando uma nova realidade na estrutura de distribuição.

11 – Reconfiguração das alternativas de locais e formatos para compras e serviços

O crescimento da participação das alternativas digitais já era uma realidade no mundo e precipitava uma forte revisão da participação dos canais e locais de compras. O setor de shopping centers já vinha enfrentando essa realidade repensando sua oferta em termos de produtos, marcas e serviços. Mas tudo isso agora toma outro rumo, no curtíssimo prazo e por período limitado pelo acesso proibido. No médio e longo prazo, porém, crescerá esse processo de reconfiguração dos shoppings e centros comerciais pela aceleração de uso da conveniência, facilidade e intimidade do e-commerce e do delivery.

E igualmente sua reconfiguração como destinos de entretenimento e lazer e, de forma mais abrangente, de serviços pessoais. Mas também teremos a expansão dos locais de compras autônomos, com menos gente e mais conveniência. Localizados onde está a demanda e permitindo a redução do tempo e a necessidade de deslocamento. Vamos assistir ao crescimento de uma nova geração de formatos, onde Amazon Go e outros foram precursores, mas agora reconfigurados em sua proposta, tecnologia e oferta.

Igualmente relevante é a discussão de curto prazo envolvendo as relações entre desenvolvedores de centros comerciais e inquilinos, ambos pressionados pelas estruturais mudanças— e que marcarão as percepções e discussões futuras entre esses grupos integrando ou dificultando o diálogo estrutural.

12 – Cresce ainda mais a importância do propósito. E não só na teoria, mas em ação

Esse movimento também estava bem definido. Especialmente a partir dos últimos anos, quando empresas e marcas se deram conta que gerações emergentes cobravam das empresas e das marcas um maior compromisso com o social e o coletivo. A atual crise torna essa demanda muito mais forte, pois ações, iniciativas, comunicação e relacionamento tornaram muito mais relevante à demonstração desses compromissos. Não como simples discurso no meio do drama, mas de forma estratégica, estruturada e genuína.

Ao contrário, empresas e marcas que não têm o aval de sua história e ações estruturais e efetivas nessa direção, precisam ter muito cuidado para não serem expostas e vistas como oportunistas por consumidores-cidadãos que estão ainda mais sensíveis e atentos com esses aspectos.

13 – Uma nova dimensão da percepção de risco

Tudo parecia simples, fácil e positivo num cenário onde o novo, especialmente em termos de tecnologia, era premiado com capital abundante e os benefícios do ávido mercado financeiro. O mundo caiu na real e o lado negativo é que tudo isto custará muito caro para muitos. O lado positivo é que fundamentos da gestão de negócios e empresas voltam a ser valorizados. Margem deixará de ser coisa de rio, na expressão dos jovens empreendedores, e o “basic to basics” voltará a ser valorizado — parâmetro de decisões de médio e longo prazo, sem desvalorizar a força da inovação tecnológica, transformadora do mercado.

14 – Ser empresário ou empreendedor. Nada será como antes. Para ninguém

Para muitos empresários ou empreendedores essa é sua primeira e mais séria crise sendo enfrentada nessa condição. Ainda que o digital possa reduzir distâncias, ele não elimina o isolamento de quem está no comando, especialmente quando a crise tem as dimensões e impactos que a atual traz consigo. Muitos considerarão seriamente em voltar à condição de empregados. O problema é que, estruturalmente, seus empregos do passado não mais existem. Vivemos uma profunda e ampla transformação estrutural do emprego por conta do avanço da tecnologia e da reconfiguração do mercado. E agora, para muitos, cai a ficha que como tudo na vida existem ônus e bônus em tudo que envolva negócios. E isso cria uma nova realidade, fazendo emergir uma geração de novos empreendedores forjados na maior crise recente da humanidade.

Como sempre, no consumo e no varejo é fundamental cuidar do presente, com a “barriga no balcão” sem tirar os olhos do futuro. Mesmo no meio dessa tempestade mais do que perfeita, é interessante considerar esses pontos, ainda que, eventualmente, ambiciosos demais em sua proposta para este momento.

Simples e genuíno desejo de compartilhar percepções.