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Chargeback: a ilegalidade, o princípio da boa-fé e a segurança

O surgimento de novos meios de comércio caminha unido ao avanço tecnológico, isso é inegável. Cada novidade abre oportunidade a outras criações, sendo nesse contexto que se inserem as transações virtuais, modo de exploração de atividade econômica tipicamente contemporânea.

O tema relativo ao comércio eletrônico é sempre atual e bastante debatido sob diversos aspectos, sobretudo, como já dito, pelas constantes inovações.

Nesse contexto, torna-se importante a reflexão no que diz respeito às intermediadoras de pagamentos, que, com engenhosos sistemas de informações proporcionam aquilo que o comerciante e seu cliente esperam. Estamos falando dos credenciadores e facilitadores, como bem denominou a comunidade comercial.

Da relação apontada surgem diversas questões de grande relevância para o avanço do comércio eletrônico. É do ponto de vista jurídico que fazemos a análise de uma particularidade da relação entre o comerciante e as intermediadoras, com o objetivo de verificar a prática do chargeback, uma das cláusulas inseridas no contrato de adesão ao sistema de transações eletrônicas via cartão de crédito.

Tal abordagem se justifica ante as infindáveis objeções lançadas em face desta prática um tanto quanto controvertida, que por sua vez, surge quando é efetuada uma compra em ambiente virtual, que é autorizada pela intermediadora, e a referida compra vem a ser posteriormente não reconhecida, seja por ter acontecido uma fraude ou até mesmo por má-fé, ao passo que a administradora do cartão procede com o estorno dos valores.

Atualmente a cláusula tem atingido de modo negativo, tornando-se um peso para o comércio virtual, diante disso, pretende-se, neste humilde ensaio, analisar a validade desta cláusula perante o sistema jurídico.

Uma das principais questões sobre tal prática é em relação à transferência integral dos riscos das transações eletrônicas para o comerciante. Nesse passo, surge um primeiro questionamento: é justificável transferir ao comerciante os riscos criados pela facilitadora sobre os quais o comerciante não tem o poder de atuar? a quem cabe implementar mecanismos para evitar o chargeback e para tornar a relação comercial virtual mais segura?

Outro questionamento que ligeiramente nos ocorre, e puramente jurídico, embora seja uma questão básica principiológica, porém bastante esclarecedora no presente caso, é no que concerne à exigência da equidade nas contratações bilaterais e onerosas.

Esclarecendo: nos contratos cujo objeto prevê um ganho patrimonial para ambas as partes, tais ganhos, em regra, devem ser equivalentes, pois de outro modo não se visualiza equidade no contrato que uma parte se enriquecer à custa da outra.

Resumindo: a cláusula chargeback viola os deveres conexos ao contrato, principalmente o princípio da boa-fé e o da segurança, o que fica acentuado no fato de a intermediadora autorizar a transação e depois, unilateralmente, proceder com o estorno e lesar o comerciante.

A teor desta elucidação, é também onde reside a ilegalidade da cláusula chargeback, repise-se, o fato de transferir ao comerciante integralmente o risco das transações, tornando o contrato excessivamente vantajoso para o intermediador e muito oneroso e arriscado para o comerciante.

Importante ressaltar que o risco, em uma análise superficial, é criado pela intermediadora, e em regra, somente ela possui capacidade técnica para elidir tais riscos, conforme já se verifica em estudos que buscam implementar novas tecnologias e modos de operar as transações virtuais, no entanto, ainda deficientes.

Este fato, assim como outros que serão mostrados, nos remete, mesmo que por via oblíqua, a considerar que a cláusula é abusiva e merece ser afastada nos contratos de adesão ao sistema.

As leis vigentes aplicáveis à referida espécie contratual oscilam no entendimento dos Tribunais brasileiros. Resolvendo a questão referente à aplicação da cláusula chargeback, há entendimentos afirmando que o comerciante, neste caso, é um consumidor, logo, aplica-se o Código de Defesa do Consumidor para garantir o seu direito de ressarcimento aos valores estornados.

O que também se justifica pela vulnerabilidade técnica do comerciante, inclusive por não deter dos meios e capacidade para operar complexos sistemas criados para gerenciar as negociações eletrônicas.

Mas por outro lado, a partir de uma análise sob enfoque do Código Civil, não há outra conclusão senão aquela que entende ser condenável a cláusula chargeback, sobretudo por expor o comerciante em demasiada desproporcionalidade, somando-se ainda a nítida imposição compulsória e unilateral da cláusula.

Diante disso, faz-se pertinente o seguinte questionamento: é justificável transferir o risco desta atividade para o comerciante? Levando-se em consideração ainda o fato de que o sistema é criado, desenvolvido e gerido pelas intermediadoras, não nos afigura aceitável.

Em síntese, dado que a facilitadora se propõe a intermediar as relações eletrônicas fornecendo sistema próprio para tal, e com isso, adquirindo lucros exorbitantes sobre as relações alheias, é forçoso concluir que o risco de fraudes em sistemas, são inerentes a esta atividade e na maioria dos casos, somente elas detêm a capacidade de desenvolver mecanismos para evitar tais acontecimentos, na medida em que detêm o conhecimento técnico para operar em tais sistemas.

Isso nos leva, mais uma vez, a crer que o risco é criado pela intermediadora, devendo ela suportá-los, uma vez que são inerentes a sua atividade, pois ao comerciante já lhe cabe suportar o risco de sua própria atividade. É ilógico pensar que o simples fato “pagar” possa tornar-se um pesadelo ao comerciante.

Além dos apontamentos já colacionados, a abusividade da cláusula se justifica, principalmente pelos motivos identificados no âmbito dos Tribunais brasileiros, que constantemente vêm se manifestando a favor do comerciante para condenar as intermediadoras a restituírem os valores não repassados.

Importante destacar o trecho de decisão do magistrado Márcio Molinari, de Goiás, afirmando o seguinte: “Imperioso observar, desde logo, que as transações comerciais virtuais dependem, por sua natureza, da utilização e acesso para pagamento via cartão de crédito, cujo sistema, por sua vez, é de exclusiva manutenção, controle e responsabilidade da ré [intermediadora]”. 

No referido caso, o juiz determinou que os valores fossem restituídos ao comerciante. É nesse sentido que os Tribunais brasileiros vêm decidindo, embora ainda existam algumas divergências quanto a aspectos específicos, como foi o caso da Apelação n.º 0210780-94.2009.8.26.0100, relatado pelo Desembargador Thiago de Siqueira, da 14ª Câmara de Direito Privado do TJSP, em 19/09/2012, naquela ocasião decidiram que os valores estornados deveriam ser ressarcidos, exceto em relação às vendas desacompanhadas de comprovante de entrega de mercadoria.

Outro caso interessante identificado na Apelação nº 003136-65.208.8.26.034, que foi relatado pelo Desembargador William Marinho, da 18ª Câmara de Direito Privado do TJSP, em 19/06/2013, constando na ementa do julgado a reflexão no sentido de que “é da administradora o ônus de encontrar meios adequados para obstar o uso indevido de cartão falsificado, cuja fraude não pode ser atribuída ao comerciante, mormente porque, tratando-se de falsificação, provavelmente não haveria diferença entre a assinatura aposta no cartão e a lançada no comprovante de venda. 2. Tendo autorizado as transações mediante seu sistema, a administradora se obriga ao pagamento destas.” 

Por fim, diante do que se tem verificado na atual sistemática das decisões judiciais, assim como, de uma análise superficial deste acadêmico em face da adesão dos comerciantes aos sistemas de transações virtuais, afigura-me correto e justo os entendimentos que afirmam ser abusiva a cláusula chargeback por transferir ao comerciante um risco que não deveria ser suportado pelo mesmo, conforme já se comentou.

Mais importante do que o diálogo da transferência dos riscos e da responsabilidade civil por eventuais práticas abusivas é o diálogo que busca eliminar a possibilidade fraudes e desenganos no momento da contratação, o que refoge ao âmbito exclusivamente jurídico, sendo necessário um diálogo multidisciplinar.

Salienta-se, por fim, que estes escritos não tiveram a intenção de propor soluções, mas sim, contribuir, fomentar e iniciar estudos no que tange as presentes relações.